segunda-feira, 27 de agosto de 2012


CAPÍTULO 3

      Subir a rua Dom José de Mascarenhas fazia-me recordar os tempos de criança quando, depois de jantar, os meus pais resolviam ir até casa dos meus tios que ficava na praceta José de Mascarenhas, situada no final da rua com o mesmo nome.
Imensas vezes vimos acidentados a chegarem em barulhentas ambulâncias que entravam cidade dentro rachando a atmosfera com as sirenes alarmantes. Ainda tenho algumas visões sangrentas gravadas na memória, como a de um africano bem alto a sair da ambulância sem camisa e com as costas abertas por um lanho de faca, ou machado, que fechava e abria conforme ele andava; ou um jovem de pijama todo borrado e mijado salvo no caminho de uma forte congestão. Registadas as paisagens violentas do mundo que por ali se apresentavam e tendo em conta o rápido crescimento da cidade de Almada, compreendemos facilmente a necessidade de encerrar o hospital naquela rua e fazê-lo funcionar muito mais bem preparado estruturalmente numa posição geográfica mais prática e de fácil acesso, lá para os lados do Pragal.
Na televisão, Almada procurava transmitir uma imagem extremamente positiva sobre si mesma - já que era uma das cidades mais evoluidas do paìs em variadíssimos patamares - convidando os telespectadores a virem morar em tão bom concelho, ou a participarem nas festas e actividades que a Câmara Municipal organizava, ou apoiava. Só que bastava andar pelas ruas com olhos-de-ver para ficar a saber que a coisa não andava assim tão boa. Tudo não passava de uma fachada de aparência provincianamente moderna e burguesa, onde, os que tinham muito, cada vez tinham mais e os que tinham pouco, cada vez tinham menos: as posses materiais na mão do povo haviam aumentado, proporcionando-lhes uma melhor qualidade de vida material graças ao sistema de compra a crédito, mas também cresciam as dívidas e poucos eram os que, com o passar do tempo, estavam a conseguir ultrapassar, vitoriosamente, o abismo das contas a pagar.
Vinham todos juntos fazer uma festa em frente à porta de casa dos cidadãos, prometendo-lhes o mundo e o céu: as finanças, a segurança-social, as companhias de seguros, as imobiliárias, os stand’s automóveis, as funerárias, os hiper-mercados, etc.
Todos casados uns com os outros, comiam tudo e não deixavam nada!
      E porque o povo pertencia à terra e a terra estava-lhe a ser tirada e substituída por uma azáfama que o estava a fazer “perder-a-cabeça”, é que o termo stress apareceu em Almada.
      Aparentemente, até parecia que no concelho tinha deixado de haver pobreza e miséria e que agora estava tudo bem, como se houvesse trabalho para todos, bens de primeira-necessidade para todos, sistema de saúde de qualidade para todos e sempre alguém pronto a tratar das coisas que estavam mal, tal e qual como levavam as massas a acreditar. Isso era aparência para turista. Para acalmar a população e para ela não pensar, nem sentir tanto, faziam-lhes comemorações e decorações de rua nas épocas festivas e distraiam-nas com actividades municipais, nas quais, dezenas e centenas de milhares de euros (ah, que desgraça aquele €uro!) eram queimados, por exemplo, com fogos de artifício, paradoxal e manipuladamente, perante o aprovamento do próprio povo!
Distraiam as pessoas com concursos e desportos televisivos; esperançavam-nas com o totoloto e o totobola, com os quais chupavam centenas de milhares e até milhões por semana à massa populacional, iludindo-a de que qualquer um que se fosse jogando durante toda a sua vida, algum dia, certamente, teria a sorte a bater-lhe á porta! “Ofereciam-lhes” o Big Brother na televisão, para o qual milhões de pessoas ligavam para votar, sendo as chamadas telefônicas cobradas na altura com a tarifa de 0,30€ e 0,45€ cada uma (faça-se a conta por baixo: 0,30€ x 2 milhões de telefonemas = 600.000€. Isto multiplicado por várias semanas de concurso e imagine-se o lucro que estes programas faziam chupando o dinheiro de um povo tão necessitado e carente)!
E com isto lá se ia espalhando distração com um sem número de actividades que, por um lado, elevavam a consciência de uns poucos que olhavam tudo isto como revelações do que realmente estava a acontecer e qual as verdadeiras intenções, manipulações e artimanhas dos Senhores do Mundo; mas que, por outro lado, adormeciam os restantes, que eram a maior parte da população. Fossem lá dizer isto aos adormecidos!? Todos, individualmente, achavam estar despertos para a vida e para a morte e bastante conscientes do que se passava dentro do funcionamento da sociedade... e por isto tudo ser uma grande mentira e uma enorme ilusão é que resolvi escrever o que escrevi.
Até parecia que todos sabíamos andar no mundo, sabendo o que era a vida e a morte, de onde vínhamos e para onde iríamos.
      Aqueles a quem, normalmente, chamávamos de “eles” (e quem são eles senão nós mesmos que admitimos que as coisas continuem como estão?) não davam a conhecer ao turista a realidade do Carocha, nem de outros mais que também habitavam em situação precária, ou pior, e viviam na rua, como animais, comendo do lixo, desprezados praticamente por todos aqueles que se cruzavam em seu caminho. “Eles” não davam a conhecer ao turista a realidade de algum desempregado que, sem dinheiro, caía no ciclo vicioso de nem sequer conseguir meios para procurar trabalho, o que, evidentemente, proporcionaria a queda em riste da sua própria condição social; nem tão-pouco se referiam á realidade da quantidade de drogas leves e pesadas que eram trazidas para Almada, traficadas e consumidas na cidade e arredores, nem da quantidade de lares destruídos, ou para sempre tocados por aquela epidemia; nem das drogas legais com que enfrascavam a população tornando-a sonâmbula; nem falavam do preconceito entre as classes, nem dos bairros-sociais ao redor de Almada (mais apropriadamente chamados de bairros exclusão social) e das realidades que lá se viviam, onde a droga, a criminalidade infantil, o desemprego, a violência doméstica e a violação de uma série de direitos humanos eram o pão-nosso-de-cada-dia para muitas das pessoas que lá viviam; nem revelavam ao turista a realidade dos empresários que fechavam as portas das suas empresas, metiam os empregados na rua com ordenados em atraso e fugiam a meio da noite em camiões carregados com toda a maquinaria da empresa - mudando-se para os países consumidos do hemisfério sul do planeta (em África e na América do Sul), onde a mão de obra era extremamente mais barata - deixando em Portugal milhares de pessoas desamparadas e sem trabalho. Daqueles países para onde eles se mudavam era de onde vinham maior parte dos imigrantes que chegavam a Portugal e à Europa em geral, fugidos da mão-de-obra barata que, em seus paises, não lhes fornecia qualquer prespéctiva de melhorar a sua própria qualidade de vida, nem a de seus filhos, nem tão-pouco a do país - aqueles empresáros desonestos e sem consciência eram muitas vezes olhados naqueles países como benfeitores e até como santos, pois, haviam proporcionado em tais lugares, sem dúvida, a oportunidade de emprego e melhores salários do que os existentes a meio de tanta miséria que por lá se vive: as pessoas que assim os aclamavam não tinham consciência do que faziam, por não terem total consciência da sua própria pobreza: simplesmente não tinham meios de comparação entre as suas tristes realidades e as realidades dos países chamados de primeiro-mundo, nem do que haviam feito tais benfeitores nos seus países de origem. Os nativos dos chamados países de terceiro mundo, ao serem pagos ao mês o que no hemisfério norte se recebia ao dia, fabricavam ali produtos que custavam pouquíssimo ao empresário, para depois serem vendidos por aquele "santo-homem", por mil vezes, dez mil vezes mais caros nos paises consumidores do que o real preço de custo.
      Longe da paisagem europeiezada que procuravam transmitir, a pobreza e a miséria, a fome material e a sede espiritual continuavam a existir nos grandes centros urbanos de Portugal e do mundo... e Almada não era excepção. Eu até poderia acreditar que, a então presidente da Câmara Municipal de Almada e a sua equipa de vereadores, se esforçassem para lutar contra aquele tipo de situações, só que os frutos eram, compreensivelmente, limitados, já que eles próprios estavam inseridos, eram pressionados e controlados por forças e interesses de perspectiva mundial. Mas a verdade é que eu próprio não sabia até onde chegava a boa-vontade de tais políticos.
      Vivia-se a instauração da Nova Ordem Mundial de controle tecnológico a caminhar para o absoluto!
      Também na rua Dom José de Mascarenhas encontrei daqueles antigos operários e combatentes revoltados interiormente porque viam que tinham lutado por um país que, além de lhes virar as costas, ainda por cima estava a ser vendido ao estrangeiro por um regime-após-regime político que, cinicamente, dizia ter ultrapassado uma ditadura. No entanto, bastava abrir um pouco os olhos e ver que em mais de trinta anos de “liberdade”, somente dois partidos políticos haviam subido ao poder em sucessões de quatro anos: o P.S. (Partido Socialista) e o P.S.D. (Partido Social Democrata). Metaforicamente, o que eles haviam feito fôra mudar o nome da “Ponte Salazar” para “Ponte 25-de-Abril” (a qual atravessava o rio Tejo, unindo Almada, na margem sul e Lisboa, na margem norte), só que esqueceram-se de a atravessar para o outro lado e Portugal continuava do mesmo lado onde sempre estivera: o lado da ditadura, desta vez praticada de um modo ainda mais dissimulado e cínico.
      Continuei andando e quando dei por mim estava no Jardim do Castelo de Almada, topo da cidade, aparentemente, longe de tudo. Tinha atravessado toda a rua Dom José de Mascarenhas absorto nos pensamentos que me iam surgindo, conforme ia dislumbrando tudo naquela rua como se fosse a primeira vez que estivesse a contemplá-la num Sábado de manhã. Trepei pelas estreitíssimas ruas de Almada-Velha, apoiando os pés nas tortas calçadas de pedras pretas que ainda não tinha sido coberta por alcatrão - o que veio a acontecer mais tarde - polidas pelas antigas carroças dos burros, pelos milhares de pés que já as haviam pisado e pelas modernas rodas com pneus.
Por ser Sábado de manhã, ainda havia muita agitação na cidade: barulho de máquinas a trabalhar na restauração de canos de água e esgotos no sub-solo, assim como na restauração de prédios; imensas pessoas na rua a fazerem compras; e muito automóvel em movimento: poluição sonora e atmosférica, no mínimo incomodativa. Por isso soube-me bem chegar lá acima.
      O jardim estava calmo. Somente um senhor, já com alguma idade, passeava por ali, devagar, de mãos atrás das costas, como quem nada espera. Também ali, no meio da antiga arquitectura que ainda pintava o jardim em paredes de branco-cal, bordadas a tijolo pequeno vermelho escuro, o lixo mostrava o que tinha sido a noite anterior: alta farra! Ou melhor, baixa farra! E se não fora farra, pelo menos fora moca, bebedeira, alienação e insanidade! A diferença é que ali viam-se muito mais garrafas e imensos indícios de terem  sido feitos e fumados muitos charros. O cheiro a urina fazia-se sentir, e ali e acolá (como não podia deixar de ser) alguns vomitados!
Aquele jardim, por ser no cume da cidade, era utilizado como ponto de refúgio por aqueles que viviam marginais á sociedade, ou a si mesmos e por aqueles que por nada mais terem que fazer, ali se dirigiam para espreitar no miradouro o abismo que caia até ao Ginjal, na beira do Tejo. Espreitavam o miradouro á procura de qualquer sonho que o Tejo e Lisboa lhes podessem oferecer. Alguns, por nada verem, ou verem coisas não muito agradáveis, já se haviam lançado dali ao encontro do Eterno! Devido ao jardim ser no topo de uma colina e também devido áquele ambiente de consumo de venenos, o pequeno parque infantil ali existente raramente era utilizado por crianças, o que fazia com que aquele espaço - devido á falta do riso das crianças - fosse um local de ambiente mais pobre.
      Passado pouco tempo de eu ter chegado, os empregados da Câmara Munícipal de Almada vieram e lavaram tudo à mangueirada. Tudo mudou: o verde ficou mais verde. O ar encheu-se com o cheiro da terra molhada e o próprio ambiente ficou mais fresco. O dia, aquele, prometia, novamente, muito calor. O Sol iluminava tudo e as cores vivas já beijavam a realidade do nosso viver. Reparei em especial numa das árvores onde o Sol batia de chapa e a qual emitia um verde claro tão intenso que dir-se-ia que possuia luz própria (e possuía, mas isso é outra história. Mais tarde, aquela belíssima árvore fora cortada junta com outras para dar lugar a um restaurante panorâmico de preços não acessíveis a todos. Ou seja, exploração comercial privada de patrimônio público porque o dono do restaurante era primo da Presidente da Câmara Municipal). Linda era também, pela manhã cedo, a centenária árvore que ali vivia: pelos meus cálculos, a sua raiz devia rondar os vinte metros de diâmetro, saindo da terra em braços de força inimaginável, aos borbotos e com formas algo fantasmagóricas. O nome daquela árvore já o esquecera, mas várias gerações tinham aceite e ainda aceitavam o irrecusável convite de a trepar por ali acima. Ouviam-se alguns melros que apanhavam insectos no meio da relva e as palmadas das asas das andorinhas que voavam quase em silêncio, virtuosas, pelo meio de corredores aéreos que o próprio design do jardim formava. De vez em quando o zumbido das abelhas e dos abelhões, das moscas e de outros insectos voadores deixavam-se notar no meio da melodia natural. Era relaxante ouvir o som próximo da água a bater na pedra da bica, na qual as vespas, também elas, iam beber. Aquela era considerada por muitos a melhor água de Almada; possivelmente, porque era a que mais esforço exigia para ser bebida - principalmente em dias calororsos como aquele era. Quando a surviamos após a longa e inclinada subida, sabia como a água de um óasis que se encontraria no meio de um deserto, de tão fresca, límpida e viva.
      Aproveitei e flui-me naquela atmosfera para criar, escrevendo. E criei numa agradável inspiração, ao sabor duma leve brisa fresca que passava e que pouco mexia as folhas... ao som dos pardais... dos milhafres que, lá no alto, piavam o seu ponderio por aquelas bandas, planando imóveis sobre a terra esperando a oportunidade de caça oferecida por algum roedor, ou por alguma pequena cobra que os fizésse picar o vôo desde as alturas até ao mato rasteiro e emaranhado que se precipitava pela arriba-fócil abaixo. Também me era oferecido o grajar das gaivotas que, tantas vezes, desafiavam o território daqueles predadores. Tudo o que eu precisava para me inspirar estava ali.  
Ouvi também o barulho dos carros a andarem na ponte 25 de Abril (a tal antiga ponte Salazar). Com perto de dois quilómetros de comprimento, por ela, em pouco tempo, fazia-se a travessia do rio Tejo, entre Almada e Lisboa: o sul e o norte do país. Os almadenses já estavam tão habituados ao som provindo da vermelha ponte, que aquele se espalhava por toda a cidade e os almadenses raramente o ouviam, já que o esqueciam devido à sua constante presença. Abafado durante o dia pelo constante barulho urbano, ele lá continuava como pano-de-fundo, somente á espera de uma oportunidade para se fazer notar, como acontecia durante noite nos locais mais calmos de Almada, ou durante a madrugada em praticamente toda a cidade... e a mim, aquele zuummm!!! fazia-me lembrar um enorme enxame de abelhas.
Entretanto, no jardim do castelo, os anos que muitos tinham levado para lá - já medidos em décadas - de consumo de drogas, álcool, homossexualismo depravado e de prevaricações em geral, não se lavava com a água da mangueira... e de uma, ou outra maneira, ali permanecia a bafurada dos comportamentos de consciência mais baixa.
      Alguém dormia num dos bancos do jardim, em posição fetal. Pensei que fosse um que não tivesse suportado a moca, ou a bebedeira da noite anterior... mas não. Era um homem que aparentava estar na casa dos quarenta e que, aparentemente, não tinha casa. Aparecera no jardim do castelo no princípio do Inverno passado e por ali ficara. Dormia ali, comia ali (quando comia)... mais um como qualquer um, com a sua história de vida.
      Enquanto eu escrevia qualquer coisa que já não me lembro o quê, chegaram os primeiros frequentadores habituais do jardim para fumarem a primeira ganza do dia: jovens com quinze, dezoito, vinte, vinte-e-poucos anos e outros até mais velhos, maior parte desempregados, vivendo ás custas dos pais e que por ali paravam todos os dias á volta do mesmo motivo: consumir alguma coisa que os fizésse sopurtar melhor o dia-a-dia, alterando a sua precepção da vida. Maior parte toxicodependentes que já não consumiam drogas duras, mas que tinham como príncipal objectivo do dia fumarem haxixe e “encherem a cabeça”.
      “- Não fazem nada da vida!” - era o que sobre eles se dizia. Mas uma pessoa quando acordava de manhã, alguma coisa haveria de fazer; nem que fossem coisas menos saudáveis, ou de contribuição não desejada para com os finalidades sociais da comunidade em que estavam inseridos... mas, certamente, alguma coisa haveriam de fazer.
      Maior parte, rapazes espertos... e alguns inteligentes... uns quantos de bom coração... mas que não tinham, em regra geral, mais conhecimento do que aquele que lhes era oferecido através da televisão e pela própria experiência de vida: futebol. Sexo. Mulheres. Drogas. Motas e carros. Tropa. E mulheres e sexo. Ou alguma notícia mais escaldante. Jogo. Drogas. Filmes. Sexo.
      “- E há mais alguma coisa de interesse nesta vida?!”- perguntavam-me.
      Não. Para eles não havia coisa alguma a mais além daquilo que lhes era dado pelo conceito social e televisivo, ou o que lhes era oferecido pelos sentidos. Não procuravam conhecimento, logo, a sua ignorância e a sua estupidez notavam-se a olhos vistos.
      Mas aquela falta de lógica natural acontecia também com a classe operária, com os comerciantes, com a classe-média aspirante a burguesia, com a própria burguesia, com a classe política, financeira, etc. Como o deus daquele época era o dinheiro e com ele a ciência, maior parte do tempo de existência daquelas pessoas era voltado para a distração em relação á ignorância que possuiam em relação á sua própria existência; logo, a sua atenção era voltada para a obtenção do vil-metal e do bem-material... ou através do trabalho, ou de artes  ilícitas... mas não concentravam suas existências para o auto-conhecimento e consequente descoberta da vida e seu significado; por isso, a ignorância não assumida perante a existência e a condição humana predominava, apesar de parecer que todos sabiam lá andar. Também a classe governamental tinha direito a viver no seu mundo de ideias curtas, sem pensar no sentido da vida, tal e qual como o pessoal do Jardim do Castelo de Almada, só que com outro poder de alcance, de movimentos e consequências, evidentemente, muito mais abrangentes e preocupantes.
      Mas ambos preferiam falar de outras coisas do que falar do tema mais grandioso que alguma vez existira e haveria de existir: a Natureza das coisas! O significado das coisas! O significado da Vida! Da Morte! Do Universo! E da existência de todas as coisas em geral...
      ... e porque a ignorância se espalhára a todas as classes sociais, é que o país e o mundo estavam como estavam. Está claro que a grande parte das pessoas tinha consciência que estava em cima de uma bola de terra a viajar pelo vazio do espaço a mais de cem mil quilómetros por hora (será que tinham?!!!), só que esqueciam-se disso e preferiam centrar a sua atenção nas coisas mais pobres da vida, ou seja, no lado material da sua existência, descorando por completo o seu universo interior. Em consequência daquilo, a vida no planeta estava a deteriorar-se, já que as pessoas andavam a imaginar coisas mais mortificantes do que vivificantes devido à educação que possuiam, que não lhes possibilitava fazer melhor do que aquilo mesmo.
      Ora, aqueles rapazes não eram dados ao tipo de vida social e cultural, nem à vida familiar, ou profissional, que acontecia em Almada e por isso, refugiavam-se no alto da cidade, no jardim do castelo.
      “- Quando os meus pais morrerem, o que vai ser da minha vida?”- perguntavam-se perante rasgos de consciência. Um até me chegou a  confessar:
      “- Quando estou a trabalhar sinto que não estou a aproveitar bem o tempo. Ou melhor, sinto que estão a roubar-me tempo precioso de vida que podia utilizar para descobrir-me a mim próprio e para fazer  coisas que eu gosto. Mas quando não estou a trabalhar parece que não sei como aproveitar o tempo livre. Olha, fumo ganzas, jogo ás cartas, bebo umas cervejas e estou com o pessoal, é o que eu faço. Mas sei que isso é completamente errado e vazio.”
      O que na realidade acontecia era que aqueles jovens já tinham trabalhado em muitos sítios e já tinham feito muita coisa e tido muitas oportunidades de construir qualquer coisa em suas vidas... oportunidades apareciam sempre... só que acabavam sempre por deixar para trás cada uma delas devido à falta de motivação para construirem, ou terem, alguma coisa na vida... o que era paradoxal, pois, coisa que faziam era cobiçar o lado material da vida (carros, telemóveis, roupas, jóias, etc.)... mas, penso eu, se não lutavam, nem sequer, para obter o tal material que cobiçavam era porque, verdadeiramente, aquelas coisas não tinham para eles qualquer valor! E deixavam os tais trabalhos para trás  devido à falta de motivação que começavam a sentir pelos mesmos, em resultado de estarem sempre a fazer, repetidamente, a mesma coisa desinteressante, mecanicamente, em linhas de montagem... ou por estarem a ser explorados por empresas multinacionais com ordenados irrisórios, que cobriam um terço do custo de vida em Portugal... ou porque os patrões de pequenas, ou médias empresas descarregavam neles a frustração que sentiam como cidadãos do mundo, tratando-os sem respeito algum pela pessoa e pelo trabalhador... ou porque as pessoas com que trabalhavam mais pareciam animais em competição pela carne, fazendo, sem escrúpulos, de tudo para subir mais um posto, cair nas graças do patrão e ganhar mais algum dinheiro, poder. Muitos deixavam de trabalhar, até mesmo, devido à destruição ambiental e mental em que se sentiam a participar e/ou a serem vítimas. E como não queriam, nem se sentiam confortáveis em participar em tais coisas, saltavam fora! Quer dizer, razões não faltavam para justificar a sua desistência dos caminhos que lhes apareciam e voltar a estagnar no Jardim do Castelo... havia sempre qualquer coisa! Preferiam ficar desempregados, desintonizados do movimento social que os rodeava, ouvir os pais a discutir com eles e a chamarem-lhes “uns bandidos, uns marginais, uns vadios” e outras tantas coisas nada agradáveis de ouvir sobre a nossa própria pessoa, do que lançarem-se na vida e descobrir o que aquela tinha para oferecer. Também haviam aqueles que, simplesmente, não queriam trabalhar, por preguiça. Mas maior parte deles sonhava em construir qualquer coisa: uma família, uma casa. Porém, sem os desculpar, eu compreendia-os: uma vez que o trabalho, além de ser um meio de sobrevivência, era também um meio do indivíduo se afirmar e de construir a sociedade, o trabalho deveria ser algo em que as pessoas dessem largas ao seu espírito criativo, em que se sentissem confortáveis, realizadas e felizes... só que tal não acontecia. Ora, se as pessoas se sentissem descontentes, desconfortáveis e frustradas com aquilo que, obrigatoriamente, tinham de fazer para ganhar dinheiro para sobreviver, então, o resultado seria uma sociedade degradada em termos físicos, morais e psicológicos... ao trabalharem, estavam a construir a sociedade... e ao construir a sociedade estavam a fazer da sociedade aquilo que sentiam e pensavam enquanto estavam a trabalhar... e se se sentissem descontentes, desconfortáveis e frustradas, estariam, evidentemente, a contruir uma sociedade, também ela, descontente, desconfortável e frustrada. Infelizmente, era aquele lado negativo que predominava naquela civilização, que mais parecia uma selva!
E depois, aqueles rapazes e raparigas ficavam por ali, a fumarem ganzas e a jogarem ás cartas. Deixavam suas vidas cair num  caos maior do que aquele em que a própria sociedade se encontrava.
      Aqueles jovens eram o que, a minha visão poética sobre a vida me mostrava, autênticos “resistentes-desistentes”: a resistência que faziam (e maior parte deles não tinha consciência daquilo) era contra aquele tipo de sociedades que desde sempre haviam oprimido, controlado e destruido milhões de pessoas; era contra aquele tipo de sociedades em que existe sempre alguém que se sente digno e em posição de mandar e controlar os outros. Porém, aqueles jovens não sabiam como executar tal resistência e acabavam por se destruir a si próprios, ao desistirem, ficarem inertes, consumindo substâncias que lhes envenenava o cérbero e, pouco a pouco, os bloqueava mental e fisicamente. Digamos que eram como que uma resistência frustrada, pois, ainda não tinham maturidade suficiente para compreenderem que, se queriam mudar alguma coisa e fazer uma resistência inteligente contra uma sociedade que recusavam, o tinham que fazer por dentro, inseridos na sociedade que abominavam.
      A solução seria acabar com as autoridades. Acabar com todos aqueles que tinham a prepotência em pensar que podiam exercer autoridade. Os postos de autoridade eram ocupados por gente que não sabia exercer a autoridade; logo, a autoridade era deficientemente exercida. Se a autoridade fosse bem exercida, todos receberiam - desde que nasciam - boa educação, boa orientação, bons exemplos e deste modo, todos se tornariam dignos de ocupar postos de autoridade e as autoridades acabariam por não existirem mais indivíduos em quem exercer tal autoridade. Mas como ainda não se havia chegado a tal nível de maturidade espiritual, antes de acabar com as deficientes autoridades, perguntar-lhes-íamos:
      “- Sabem vocês de onde vieram? Ou o que estão aqui a fazer? Ou para onde irão quando morrerem? Ou o que é o Universo? O que são vocês? Não sabem? Então, homens perdidos e cegos, arrogam vocês dizer aos outros por onde eles hão-de ir, o que devem fazer, ver e pensar?”
      A solução seria acabar com eles! Acabar com todos aqueles que ousavam em mandar, em controlar!
      E, frizo: disse “acabar” e não disse “matar”!... e frizo isto para afastar algumas interpretações que certas mentes possam elaborar. Aliás, todos os chamados Grandes Livros Espirituais do Mundo ensinavam que não se deveria matar... mas também ensinavam ao que havia um tempo para tudo! Aqueles livros, afinal, lembravam por escrito, ao mesmo tempo, os mais elevados (e também os mais terríveis) exemplos de comportamentos humanos, os quais deram origem às religiões do mundo. Só que, por sua vez, foram distorcidos, com o passar do tempo, tanto ao nível da interpretação sobre aquilo que estava escrito, como também fisicamente adulterados adiccionando idéias estranhas aos textos originais, ou a através da estúpida censura de algumas idéias neles expressas... tudo em prol dos interesses de uns poucos com fome de poder e controle. Mas tais textos, quando bem interpretados, ensinavam-nos isto:  Amar! Eles tinham sido criados para elevar a nossa consciência e a qualidade de vida das nossas civilizações e ensinavam-nos que haviam certas coisas que eram melhor não colocar em prática, apesar de possuirmos o poder para tal... e isto se quiséssemos caminhar no sentido do auto-conhecimento... porém, até aqueles livros, graças à ganância de alguns individuos, foram motivo de chacinas, o que acabou por afastar maior parte da população mundial dos verdadeiros e livres estudos espirituais, naturais e humanos, que as Altas Inspirações do Universo nos haviam legado para nosso próprio bem-estar, assim como para o bem-estar das formas de vida que nos circundavam. Os estudos que se faziam naquele tempo acerca do auto-conhecimento era sempre coberto pelo manto de um qualquer "ismo" que os limitavam a uma visão finita, presa a um dogmatismo particular, ou instituicional, de quem se achava prepotente de pensar que a sua interpretacão sobre a Vida no Cosmo é que era a correcta.
      Mas a solução era acabar primeiro com as autoridades que erguiam outras autoridades, ou seja, acabar com os Senhores do Mundo, os donos do mundo que ninguém conhecia e que geriam o destino do planeta como que se de marionetas se tratásse, sem que ninguém os visse na rua, na televisão, ou fosse onde fosse. A existência dos Senhores do Mundo era ignorada por maior parte da população mundial. Por exemplo: naquele tempo quem tinha maior influência e poder mundial - não fosse aquela a nação que mais força fazia para nascer a centralização do poder planetário num determinado ponto geográfico - eram os E.U.A. (Estados Unidos da América). As pessoas mais desatentas eram levadas a pensar que quem mandava nos E.U.A. era o presidente. Porém, os mais atentos sabiam muito bem que o presidente daquela nação não era mais do que uma marioneta que dava a cara ao mundo para que certas entidades – como a Maçonaria, o Grupo Bilderberg, a Comissão Trilateral, Bohemian Grove, etc. -  podessem, através dele, através do Parlamento Europeu e da Organização das Nações Unidas - jogar o Grande Jogo Mundial na direção da Nova Ordem Mundial.
      Aos Senhores do Mundo não lhes interessava incentivar os indivíduos da população mundial a buscarem o sentido de suas vidas: despertar espiritualmente estava em oposição às intensões materialistas, totalitaristas,imperialistas e tirânicas da agenda global.
      Portanto, o pessoal do Jardim do Castelo de Almada, quando não estava a trabalhar, tal e qual como o outro me confessara, não sabia aproveitar o dia da melhor maneira, nem sabia o que havia de fazer; nem tão pouco se lembrava em ir obter conhecimento sobre si próprio, sobre o planeta em que vivia, ou sobre a história do seu país, ou do mundo, a fim de compreender um pouco melhor o contexto em que estava inserido. Simplesmente, não tinham perguntas sobre a vida, ou se tinham, pouca importância lhes conferiam e nem sequer se davam ao trabalho de aprender um pouco mais sobre a sua própria existência, pois, já acordavam e saìam de casa com a idéia de se distraìrem da frágil realidade em que viviam. Com isto, ocupavam o tempo com coisas espiritualmente pobres, como jogar ás cartas, fumar charros, beber cerveja, falar à toa conversas vazias e elaborando algumas vezes bons planos quejamais se transformavam em acção. E com aquela postura davam força áqueles que tinham a prepotência em querer mandar, porque até parecia que o povo  não sabia o que fazer se não tivesse alguém a mandá-lo fazer. Ou que não era capaz de fazer alguma coisa bem feita se não tivesse alguém a comandà-lo.
Nas condições daquele momento, isto era verdade.
Mas havia uma obra mundial pela qual tantos abdicavam de ter uma vida própria, ou, até mesmo, abdicavam da própria vida: acabar com os poderosos e alcançar uma amplitude de consciência a nível indivídual e ao nível social de mestria, em que ninguém precisasse de dizer a ninguém o que tinha de fazer, pois todos saberiam muito bem o que deveriam fazer a fim de contribuirem para um próspero e vivificante desenvolvimento da verdadeira qualidade de vida indivídual e da comunidade!
      Porém, através de mirabolantes estratégias, os Senhores do Mundo distraiam o indivíduo daquilo que mais obviamente deveria ser o centro das suas atenções: o milagre da existência da vida e, mais ainda, da consciência que o indivíduo possuía sobre a sua própria existência! O resultado daquela tomada de consciência seria a elevação do individuo a parâmetros de vida mais elevados, sem ter necessidade de ficar sujeito a forças governamentais dominantes e controladoras, pois, dentro daquele nível de maturidade humana o individuo teria perfeita consciência da sua responsabilidade social e as suas acções isso revelariam.
      Aquela lavagem cerebral era tão eficaz que o indivíduo se entregava de livre vontade á dessimulada escravidão todos os dias de sua vida, caminhando entre o rebanho dos transportes públicos, por vezes com vontade de se revoltar, mas sem motivação para o fazer, ou sem coragem... ou, pior de tudo, sem um alvo concreto a atingir!
      Algum tempo depois de eu estar no jardim, os jovens vieram para junto de mim e ali contaram a noite da véspera:
      “- Ontem fui para Lisboa!” – começou um.
      A noite de Lisboa era considerada por muitos como das  melhores noites da Europa. De pé, de frente para aqueles que estavam sentados num banco junto de uma das maiores árvores do jardim, ele lá continuou:
      “- Andei ali pelo Bairro-Alto mais o pessoal. Bebêmos umas ginjas numa tasca e depois fomos até ás Docas...” – as Docas eram um conjunto de bares e pequenas discotecas á beira-rio, junto de uma marina, quase por baixo da ponte 25 de Abril. “- Andámos por lá a vêr as malucas... boas comó milho!” - depois parava por momentos como que a lembrar umas e outras que tinha visto, para depois continuar:
      “- Mãezinha do céu... aquilo é só mulheres. Um homem até fica maluco! Depois, aí por volta da uma da manhã fomos até ao Alcântra...” - discoteca tecno no bairro Alcântra – “... tive de pagar  dez euros para entrar.” – e ria enquanto contava que tinha gasto cinquenta euros naquela noite e que bebêra e fumara até não poder mais. Ora, para se ter uma idéia, naquele tempo, uma carcaça (um pequeno pão) custava cerca de vinte e cinco cêntimos... e aquela era a despesa de um jovem desempregado numa noite de fim-de-semana. Como ele arranjara o dinheiro? Vendendo haxixe!
      Outros tinham ficado por ali mesmo, no jardim, a jogar às cartas, a fumar ganzas e tabaco e a beber cervejas de litro, as quais, passado pouco tempo de as irem buscar lá em baixo nas tascas de Almada-Velha, ficavam quentes. Haviam-se sentado em cima da raiz de umas das grandes e centenárias árvores, na qual todos haviam ficado durante toda a noite.
Um outro contou que tinha ido a uma “festinha” de transe-psicodélico, onde metera pastilhas extasy e um selo de L.S.D. e evidentemente fumara uns charros e bebera qualquer coisa alcoólica à mistura. Sobre estas “festinhas” de transe-psicodélico, ou sobre as raves é que o povo em geral era completamente ignorante, uma vez que os mais velhos, ou os que estavam fora dos círculos daquela nova onda, nem ouviam falar delas, ou se ouvissem, não faziam ideia do que se tratava, ou quando e onde aconteciam.
Falaram, também, sobre alguém que estivera no meio de uma briga feia, de onde saltaram facas e pedras, o que jà era normal em Almada, numa sexta-feira à noite.
      Como o ambiente já não estava tão propício à escrita, resolvi não só mudar de sítio, como abandonar o jardim.


domingo, 19 de agosto de 2012


CAPÍTULO 2

Na manhã seguinte, pus a mochila às costas e saí de casa. Entre outras coisas, levei comigo um livro, um caderno e uma caneta... andava já há algum tempo a pensar em escrever algo que refletisse aquilo que eu sentia, que eu via ao meu redor, que me conseguisse dizer um pouco mais sobre quem eu pensava ser... e passeei o Sábado até encontrar um lugar sossegado onde pudesse ler e escrever à vontade.
As ruas por onde passei descreviam a euforia da noite anterior: noite de calor, fim-de-semana... toda a gente saíra à rua!
Passei pela Igreja Nova de Almada, onde, para além de umas pessoas com olheiras que revelavam terem estado a velar um defunto durante toda a noite, entravam noutra porta do edifício, na sua maioria, velhas de lenços negros na cabeça, curvadas pelos xailes da vida, pela solitária viuvez e pela submissão ao dogmatismo. Iam para a missa da manhã, algumas já de terço na mão. Aquela igreja de arquitectura moderna e paredes de cimento crú cinzento como o catolicismo, não tocava sinos para chamar os fiéis: eles, simplesmente, apareciam. Velhos em sua maioria, rendidos ao inevitável e á procura de remissão - não fosse aquele ser mesmo o caminho para a salvação do provável inferno anunciado pela instituição. Áquela hora poucas eram as pessoas não idosas que para ali se dirigiam.
Colado á igreja ficava o jardim Dr. Alberto Araújo, mas praticamente todos o chamavam, simplesmente, de Jardim de Almada. Com as suas enormes árvores a jogarem-se para o céu, as copas semi-ondulantes com a brisa fraca, ainda morna e a fresca sombra que delas caía, tornava-se inevitável o convite ao abrigo da já considerada praga de pombos que fustigava a cidade.
Lá ao fundo, no outro extremo do jardim, já na Praça Gabriel Pedro, erguia-se o autoritário edifício do tribunal de Almada, que, mesmo fechado, fazia conter algumas ideias mais subversivas.

Atravessei o jardim, passando pelo lago onde, durante os dias mais quentes, tantas vezes se viam crianças de cuecas a tomarem banho. Este lago tinha a resguardá-lo um mural triste assinado por Cargaleiro, o qual bem se harmoniava com o cinzento da igreja, numa arquitectura ditadurial sombria que se estendia, não só na igreja e no lago, mas por todo o jardim. Com o passar do tempo, a Câmara Municipal de Almada lá foi tendo a ousadia de alterar o aspecto algo mórbido que havia pelos cantos daquele espaço, começando pelo meio - onde espécies mais exóticas de flores coloridas se evocavam a si mesmas a quem passava, protegidas por alegres resguardos de madeira para canteiros - até alcançar os pontos mais recônditos daquele parque de lazer.
Ouvi crianças energéticas que já brincavam com os risos matinais no parque infantil que havia lá dentro, acompanhadas pelos pais, ou, mais certamente, pelos avós. Depois subi as escadas de escapatória que dão para o quartel dos Bombeiros Voluntários de Almada e continuei a subir até chegar á rua Capitão Leitão.
Com a respiração um pouco ofegante, constatei que naquela rua predominavam pontas de cigarro e papéis; embalagens de plástico e cartão, jogadas no chão sem nenhum cuidado. Espalhadas, garrafas vazias que haviam enchido cabeças... e vomitados nos cantos mais imprevistos.
      Áquela hora, o Sol baixo da manhã já subia as ruas e até já batia em algumas paredes e jardins. Áquela hora já os antigos combatentes das guerras do ultramar (e não só) estavam metidos nos cafés que se estendiam ao longo da que nos tempos antigos se chamava rua Direita (a rua Capitão Leitão), a beberem a bica da manhã e a fumarem o cigarro que talvez não fosse o primeiro, acompanhados por um martini, um moscatel. As tascas também já estavam abertas e alguns até já tomavam o seu primeiro copo de três, de bagaço, ou de aguardente. Muitos daqueles eram antigos operários dos estaleiros navais e das fábricas do concelho de Almada e do concelho do Seixal, que haviam fechado. Maior parte deles tinham passado naquelas empresas maior parte das suas vidas, sonhando e trabalhando na construção de uma vida com mais qualidade após o fim da ditadura em 25 de Abril de 1974, com uma existência mais cómoda e segura do que aquela que a infância e a juventude lhes oferecera no Alentejo, no Ribatejo, no Norte de Portugal: eram os primeiros anos pós-ditadurial e pós-guerra colonial. Porém, passados somente cerca de quinze anos após a pacífica revolução de 74, aqueles homens sofreram repetidamente com os longos meses sem receberem ordenados - o que já anunciava o fim de suas vidas proletárias naqueles complexos industriais, estaleiros navais e ciderurgias - para, depois de tudo, serem despedidos, ou, como poucos, antecipadamente reformados.
Muitos estavam ali, na condição de serem novos demais para se reformarem e velhos demais para trabalharem e serem aceites nas novas empresas do mercado de trabalho. Sofriam com a falta, ou insuficiente, qualificação profissional em relação ás exigências duma nova sociedade cada vez mais tecnológica e computorizada.
Passei pelo Largo do Chafariz José Alaiz, onde se condensava a quantidade de papéis, copos de plástico, garrafas de cerveja e pontas de cigarro. Alguém dormia no imenso banco de pedra que ficava colado à lateral de uma das centenárias casas que circundavam o pequeno largo. Algumas pessoas tomavam bicas e bolos de pastelaria no café do largo. Continuei a minha caminhada pela Rua Capitão Leitão, espreitando para dentro dos cafés e das tascas, onde as geraçãos mais antigas despertavam o Sábado.
Como o desenvolvimento que o império a que estávamos subjugados incutia nas gerações mais jovens a necessidade de migração para o litoral – principalmente, para a zona de Lisboa e Setúbal – o movimento das massas exigia que muitos edifícios fossem construídos. Após os despedimentos em massa. a salvação para muitos daqueles ex-combatentes do ultramar, foi ingressar na construção civil em pequenas e médias empresas já existentes, ou criadas por alguns deles, que não tinham sido tão profundamente tocados pelo espírito da desmotivação que, abutre, planava por todo o país e que ainda tinham conseguido encontrar dentro si a pujança para construir algo.
      Aquelas pequenas empresas de construção civil sustentaram-se nos pilares erguidos pelas companhias multinacionais que consquistavam o mercado de trabalho em Portugal com projectos megalómanos e europeizados que foram surgindo um pouco por todo o território nacional, como a Expo 98, em Lisboa (ex-líbris da arquitectura moderna em Portugal), os colossais empreendimentos comerciais Centro Comercial Colombo (o segundo maior espaço comercial da Peninsula Ibérica na altura em que fora construido também em Lisboa) e o Caiscais-Shopping, em Cascais; ou, mais futuramente, o Forum Romeu Correia, em Almada (ainda maior, devastadoramente maior, do que qualquer outro que até ali tinha sido construido no território nacional). Aqueles empreendimentos eram a imagem da tendência para projectos megalomanos que existia na alma portuguesa - herança dos tempos em que Portugal ainda não existia como nação, herdada dos tempos da civilização megalítica que deu origem aos dólmens e ás antas do Alentejo e mais futuramente (estendendo-se para norte) ás do resto do país.
      A tendência para se lançar em obras megalíticas fora a mesma que dera ímpeto cinco séculos antes ao projecto áureo dos descobrimentos e que ainda em finais do século vinte - mesmo viajando a nação pelo novoeiro sebastianista - se revelava na construção daquels edifícios e complexos culturais e comerciais, completamente incoerentes com o desenvolvimento do resto da nação e tantas vezes considerados pela população como despropositados.
Aqueles projectos eram, porém, em vaidade política provinciana, ridiculamente pavoneados aos olhos do estrangeiro, por não se descobrir mais nada com que acenar ao exterior.
      Mas a crise da alma portuguesa era tão inertemente sonâmbula que fazia com que, aqueles mesmos do povo que, como velhos do Restelo, resmungavam críticas negativas enquanto os projectos eram construidos - dizendo que o dinheiro que ali era investido seria muito mais bem utilizado  na  saúde,  na  educacão, "- Os idosos com pensões de miséria e estes gajos aqui a gastarem milhões!!!" - eram os mesmo que iriam vestir-se a rigor para ir com a família á inauguracão de tais obras e passear com as mesmas os fins-de-semana familiares, tal e qual como quem antigamente se vestia a rigor para, ritualmente, ir ás missas nas manhãs de Domingo.
      Muitos daqueles pequenos negócios de construção civil que ajudaram a erguer os projectos megalômanos multinacionais acabaram por desaparecer devido ao abrandamento da construção civil e devido também á enorme concorrência que havia umas entre as outras, tão grande fora a quantidade de pequenas empressas daquele tipo que haviam surgido até ao período de transição para o nono milénio.     
      Mas, afinal, as fábricas e os estaleiros que haviam despedido os antigos combatentes do ultramar... não tinham sido elas e eles que haviam empurrado Almada e todo o distrito de Setúbal, para prosperar e crescer no comércio, na cultura, no desporto e em tantas outras áreas? Aquelas empresas, por volta dos anos sessenta e setenta, tinham sido a promessa de uma vida melhor para aqueles que sobreviveram ás guerras coloniais e à ditadura salazarista que Portugal vivera! Quando tais empreendimentos começaram a cair na falência, a falharem ordenados, a despedir operários aos milhares e a fecharem ante a competição cínica dos financeiros da elite nacional e estrangeira, aqueles milhares de ex-combatentes, ou não, assim como as suas famílias, passaram um mau bocado: primeiro a guerra, depois – iludidos pelo fim da ditadura de que tudo iria melhorar - os ordenados em atraso, seguidos por o desemprego, as dívidas e por fim, resistindo à pobreza, a instabilidade profissional perante qualquer coisa que aparecesse para fazer, a fim de ganharem algum dinheiro.
O estado, como sempre, abandonára-os!
      Para ajudar no clima de depressão e descrença, não foram poucos os casos em que alguns vieram a ter filhos toxicodependentes, vítimas do flagelo feio, baixo e doente (por parte dos consumidores, mas mais por parte dos traficantes e fornecedores!) que eram a heroína, a cocaína e as drogas em geral que contaminaram Portugal em grande peso, em consequência da abertura das fronteiras do país para o mundo, após a revolução dos cravos de 74. Evidentemente que as drogas já circulavam no pais antes daquela data, porém, posteriormente, a quantidade e a variedade daquelas substâncias aumentou descalabrosamente e as repercursões na vida dos portugueses em geral foi incrivelmente terrível!
      Outros operários, que tinham os filhos em universidades, ou em escolas secundárias, tão longe de serem baratas e facilmente acessíveis ás famílias mais carenciadas (apesar da propaganda política vangloriar-se que o ensino em Portugal era gratuito) até tiveram, na altura, de os tirar dos estudos por não terem como os pagar, e outros... e outros... um enorme rol de consequências que tocaram cada casa, cada família e cada pessoa à sua própria maneira e só quem passara pela experiência da crise é que poderia descrever o que sentiu e viveu... e ainda vive... por isso era natural que, áquela hora da manhã, alguns deles afogassem as mágoas do passado, ou do presente, bebendo! - já que, o país pelo qual tinham lutado, os tinha desamparado.
      Passei em frente à Sociedade Filarmónica Incrivel Almadense (mais conhecida como, simplesmente Incrível), no largo da Câmara Municipal de Almada. Do outro lado, no Tobi, a paisagem era semelhante aos dos outros estabelecimentos por onde tinha passado, (como por exemplo o Café Imperial) repleto de terceira idade. O Estrela da Manhã, igual, apesar de mais pequeno.
      Em Almada, para além de se refletir a nítida intenção por parte de algumas ordens, clubes e associações internacionais em criar uma crise global - com o intuíto de erguer uma nova ordem mundial, com um só sistema bancário no mundo, uma só moeda, um só sistema legislativo, entre outras coisas globalizantes e uniformes - outra coisa que ajudou a que a crise económica se instalasse de um modo tão forte em Portugal foi o aumento estrondoso e repentino da densidade populacional no litoral do país a partir dos anos 80: isto era reflexo, apesar de tudo, da qualidade de vida material (material, note-se!) ter melhorado e a natalidade ter crescido com ela. Para além da maior facilidade e segurança que o povo sentiu em ter filhos, o crescimento populacional era reflexo também do êxodo dos meios rurais, onde a vida estagnara e o mercado de trabalho, praticamente, era inexistente devido à falta de investimento das grandes empresas em zonas mais remotas do país. Por isso as pessoas deixavam o interior - onde a promessa de uma vida melhor nas cidades fora-lhes sorrir através das revistas de papelaria e da televisão – e mudavam-se para os grandes centros urbanos.
A crescente densidade populacional era devido, também, à entrada de muitos estrangeiros em Portugal, oriundos, essencialmente, do Brasil, Angola, Cabo Verde e nos ultimos anos, da antiga União Sovética, principalmente, da Ucrânia, sendo que os ucranianos haviam-se tornado a maior percentagem de estrangeiros em Portugal em apenas alguns anos. Aqueles estrangeiros, tal e qual como as pessoas dos meios rurais portugueses, haviam deixado a sua terra natal em busca de uma vida melhor, fugindo da miséria física, da pobreza espiritual da sua terra e muitas vezes, até da guerra.
“- Bom dia!” – cumprimentou-me o Meireles, um dos ciganos que frequentava Almada Velha.
      “- Bom dia, Meireles! Como vai isso?” – perguntei.
      O olhar murcho enfeitado pelas olheiras negras e o encolher de ombros contaram-me coisas mil sobre a  noite de 6ª Feira dele.
      Entretanto, naquela manhã, continuavam nos cafés, os reformados de empresas, dos estaleiros, ou de outra coisa qualquer, como das forças armadas, das corticeiras, das metalúrgicas. Já haviam passado mais de três décadas desde a revolução de 25 de Abril de 1974, que nos livrara da ditadura. Almada crescera. O concelho já tinha mais de cem mil habitantes e longe de ser a vila onde todas as pessoas se conheciam e sabiam da vida umas das outras, ia lá eu saber a história da vida de todos eles. Nem queria! O sistema de controle sobre a vida das pessoas somente cabia aos governos doentes e desonestos, temerosos de que alguém colocasse em causa o seu poder governamental, por isso sabia lá eu da vida de cada um.
Pessoalmente, eu sentia-me a governar pouquíssima coisa, incluindo a minha própria vida, uma vez que, a meu ver, para além de manipulado pelas forças governamentais ocultas que agiam acima da lei a que o normal cidadão tinha que se sujeitar, eu era também governado por uma Força Universal infinitamente Poderosa, Sábia e Amantíssima. Crendo nisto, não tinha medo! Logo, não precisava de controlar ninguém. Inevitavelmente, sabia por alto a história da vida de uma, ou outra pessoa. E reunindo aquilo que via e ouvia e aquilo que sabia da história de Almada, de Portugal e do mundo, junto com a minha própria experiência de vida, tive a ousadia de escrever o que os meus olhos viram ter sido a vida de Almada. Talvez o que aqui vêem descrito não fosse exactamente o que era, ou o que os outros viam, ou o que os outros gostariam que tivesse sido... mas era o que os meus olhos observavam e era o meu modo de ver as coisas.
      O que é certo é que, naqueles cafés e naquela manhã, uns liam o jornal, outros viam televisão, mas todos faziam o seu consumo entre conversa. Geração distante da minha, marcada na cara com rugas de quem passara uma vida inteira a fazer caretas à própria vida... ou a vida é que lhes fizera caretas a eles? Pessoas coscuvilheiras, metendo-se na vida uns dos outros, tal e qual tinham recebido (e ainda recebiam), como exemplo, dos seus governos. Parecia que no mundo tinha deixado de haver o modo de lutar que lhe pertencia (sindicalista e associativo) tão rápida era a transformação da cultura portuguesa e da sua rotina diária em estrangeirismo material e capitalismo de informação imediata. Mas não! O modo de luta que mais resultava para, pelo menos, chamar a atenção das massas para com qualquer facto específico em relação ao modo operandis do sistema governativo, eram ainda o associativismo e o sindicalismo, as greves e as manifestações, os movimentos populares organizados. Porém, como o povo estava a identificar-se cada vez mais com o sistema materialista de consumo imediato, aqueles homens sentiam-se postos de parte, como se estivessem a ser meros espectadores, sentados, impotentes, perante a acção decadente e em decadência que se desenrolava na tela e da qual eles estavam a ser parte também.
O povo já se estava a identificar, a agir e a stressar (é de fazer notar que o termo stress só começou a ser utilizado naquele século) com o sistema totalitarista que conquistava nação após nação, desculturalizando de um modo tão súbtil como jamais se vira ser feito por qualquer outro império, ou por qualquer senhor da guerra: só que aquilo estava a acontecer em todo o lado e em todos os países do mundo, os quais, irremediavelmente, tiveram de aderir áquele sistema de coisas onde, mais do que nunca, o dinheiro falava mais alto.
A poluição cerebral era contínua em várias vertentes!
         Continuei pela Rua Dom José de Mascarenhas, onde se situava,  antigamente, o Hospital de Almada.

terça-feira, 14 de agosto de 2012


INTRODUÇÃO

Deste modo se apresentava Almada na internet, num site da Câmara Municipal de Almada, no endereço www.m-almada.pt:
         "Almada é, pela sua História, pela sua localização e pelas suas características naturais, um local privilegiado onde há muito para oferecer. A sua proximidade a Lisboa e as belíssimas paisagens na ligação terra - rio - mar dão-lhe características únicas.
         "A grande extensão de areia fina e águas temperadas trazem a Almada milhões de pessoas no Verão, que para além da beleza natural das praias, procuram a riqueza ambiental da Arriba Fóssil da Costa de Caparica e das matas envolventes.
         "As ruas de Almada Velha e o Cais do Ginjal são lugares onde os elementos naturais e construídos estão interligados, com o rio presente e perto, constituindo um espaço onde ninguém consegue ficar alheio a esta Velha - nova realidade.
         "Equipamentos culturais e desportivos de topo, como o Fórum Romeu Correia, a Casa da Cerca, o Solar dos Zagallos, o Teatro Municipal ou o Complexo Municipal dos Desportos Cidade de Almada, entre outros, comprovam a intensa vida cultural e desportiva de Almada, onde a tradição centenária do associativismo se espelha na actividade das mais de duas centenas de colectividades e associações do Concelho."



... existe, porém, algo que não é referido...









CAPÍTULO 1

Estávamos os três sentados nos bancos-de-jardim, de maçarocas na mão, no Largo da Oliveira, onde se situava o chafariz do Pragal. Eu tinha um banco só para mim. O Carocha e o Lopes estavam os dois sentados no banco à minha direita a falarem, enquanto eu acabava de comer o milho: tínhamos vindo ajudar o Carocha a transportar água até à sua casa... é que ele morava numa casa que ele próprio construíra com pedaços de pau, de madeira, de chapa e pedra e não tinha água canalizada, nem electricidade; por isso, todos os dias tinha de ir buscar água ao chafariz do Pragal.
Era noite. Silenciosa madrugada. A conversa entre eles os dois estava animada: falavam em desenhar aquele velho sítio segundo a perspéctiva em que estavam sentados, até que se lembraram de outros locais do concelho de Almada que também gostariam de desenhar... mas tinham de ser sítios antigos... que possuíssem e neles se sentisse história!
Passado algum tempo, saímos dali e lá fomos os três: eu, ele e o Lopes.
Caminhámos sob o manto sufocante da noite que saía da terra depois de um dia de imenso calor, carregando garrafões de vida! Subimos a larga estrada, já pingando suor devido á força que faziamos enquanto andávamos com o peso dos recipientes que nos esticavam os braços. Mais acima, a estrada começava a estreitar no lado direito por um sécular muro que a erosão nos revelava ter sido feito com pedaços de fósseis da Arriba Fóssil desta margem do rio Tejo. À nossa esquerda, uma barreira de canas. Depois, inesperadamente, a visão abria-se e libertava o nosso olhar para uma rotunda enfeitada com uns jorros de água, deixando a nossa visão voar pelo espaço de um enorme terreno que por trás dela se estendia e no qual se situava a imponente imagem do Cristo-Rei. Aquele terreno alongava-se até um precipício que caìa para o rio Tejo dezenas de vertiginosos metros abaixo, ampliando-se através dos terrenos do Seminário, em vários hectares de Natureza verde e, praticamente, imaculada... tudo aquilo pertença da Igreja Católica. No lado direito acompanhava-nos o muro do campo de futebol do Almada Atlético Clube.
Estávamos no topo da cidade, no ponto mais elevado de Almada.
Naquela noite o Carocha ainda teve ajuda e levámos cerca de quarenta litros de água. Mas nas outras vezes tinha de ser ele sozinho a fazê-lo. Não quando algum de nós e outros aparecíamos... mas maior parte das vezes era ele sozinho que carregava com os garrafões... com os seus cães... com a sua casa... com o seu pequeno espaço de terra... com a sua pobreza.
Ele vivia numa das últimas centenas de casas clandestinas que existiam na freguesia de Almada, mas estava tão bem escondida que poucos sabiam da sua existência e para nós era como que um refúgio à confusão da cidade. Era quase como se voltássemos ao campo: hortas de couves, batata e algum milho; figueiras que tinham crescido sem impedimento, ou podagem... e na Primavera e no Verão muito mato que se quedava pela descida pouco íngreme daquele emaranhado de quintinhas. Era quase como se voltássemos ao campo. Quase. Nós pertencíamos ás últimas gerações que haviam conhecido o lado campestre do concelho, antes da transformação material, social, cultural e a tantos outros níveis que, nos últimos anos vinha a acontecer em Almada, a uma velocidade, cada vez mais, vertiginosa. Maior parte de nossos pais tinha vindo do interior de Portugal para procurarem na região de Lisboa a sorte e através deles viajávamos muitas vezes até ao lado rural do país, para visitar os avós... e coisa que aquilo não era, era campo! Era, sim, um espaço de terra que ainda não tinha sido vendido pelos donos a algum financeiro que o tapasse com cimento e alcatrão em algum rentável projecto imobiliário e que ainda era aproveitado por alguns que o cultivavam... todos eles, velhos agricultores.
Sentíamos saudade daquele contacto com a terra que nos lembrávamos de sentir quando éramos crianças, em nós e no povo almadense em geral... contacto tal que nos estava a ser roubado pelo império capitalista, consumista e materialista que conquistava todo o planeta. Ânsias de ter e de poder tinham invadido a cidade. Por isso, o humilde espaço do Carocha, ainda com a terra de cultivo a oferecer-se à semente, era, para nós, uma fuga à cidade e uma oportunidade de nos encontrarmos conosco próprios.
Às vezes a casa do Carocha ficava cheia de gente animada que falava, ria, jogava às cartas, fumava haxixe e tabaco; que bebia vinho tinto e Aldeia Velha esverdeada pelas folhas de canábis que o Carocha colocava lá para dentro a fermentar durante alguns meses. Gente que falava sobre temas complexos, sobre os quais eu ouvia outros a falarem, mas que naquele espaço os ouvia de um modo - senão tanto, ou mais inteligente - pelo menos mais honesto e sóbrio, o que destoava, completamente, daquele ambiente de consumo de venenos.
Em algumas noites de Verão - ou sempre que as outras estações do ano deixassem - sentávamo-nos á volta de uma fogueira que o Carocha ateava no terreno, cada um sentado naquilo que encontrava por ali (cadeiras, caixas de madeira, gavetas de antigos móveis, tijolos, tudo coisas que aquele ermita urbano encontrava pela cidade); tocávamos violas, cantávamos hinos á liberdade inventados no momento, ou rebuscados na memória lusa; batucávamos em algum jambé trazido por alguém, ou nos objectos por ali espalhados, ou até mesmo nas pernas; os charros iam rodando, tal e qual um cachimbo da paz que selava a união entre todos, pelo menos, momentaneamente. Mas era assim quando o Carocha tinha companhia, porque, maior parte dos dias e das noites tinha de ser só ele, com os seus cães, o seu rádio e a sua vida.
Naquela noite, quando eu e o Lopes deixámos o Carocha já passava das três da madrugada.
Descemos à cidade para dormir.