segunda-feira, 27 de agosto de 2012


CAPÍTULO 3

      Subir a rua Dom José de Mascarenhas fazia-me recordar os tempos de criança quando, depois de jantar, os meus pais resolviam ir até casa dos meus tios que ficava na praceta José de Mascarenhas, situada no final da rua com o mesmo nome.
Imensas vezes vimos acidentados a chegarem em barulhentas ambulâncias que entravam cidade dentro rachando a atmosfera com as sirenes alarmantes. Ainda tenho algumas visões sangrentas gravadas na memória, como a de um africano bem alto a sair da ambulância sem camisa e com as costas abertas por um lanho de faca, ou machado, que fechava e abria conforme ele andava; ou um jovem de pijama todo borrado e mijado salvo no caminho de uma forte congestão. Registadas as paisagens violentas do mundo que por ali se apresentavam e tendo em conta o rápido crescimento da cidade de Almada, compreendemos facilmente a necessidade de encerrar o hospital naquela rua e fazê-lo funcionar muito mais bem preparado estruturalmente numa posição geográfica mais prática e de fácil acesso, lá para os lados do Pragal.
Na televisão, Almada procurava transmitir uma imagem extremamente positiva sobre si mesma - já que era uma das cidades mais evoluidas do paìs em variadíssimos patamares - convidando os telespectadores a virem morar em tão bom concelho, ou a participarem nas festas e actividades que a Câmara Municipal organizava, ou apoiava. Só que bastava andar pelas ruas com olhos-de-ver para ficar a saber que a coisa não andava assim tão boa. Tudo não passava de uma fachada de aparência provincianamente moderna e burguesa, onde, os que tinham muito, cada vez tinham mais e os que tinham pouco, cada vez tinham menos: as posses materiais na mão do povo haviam aumentado, proporcionando-lhes uma melhor qualidade de vida material graças ao sistema de compra a crédito, mas também cresciam as dívidas e poucos eram os que, com o passar do tempo, estavam a conseguir ultrapassar, vitoriosamente, o abismo das contas a pagar.
Vinham todos juntos fazer uma festa em frente à porta de casa dos cidadãos, prometendo-lhes o mundo e o céu: as finanças, a segurança-social, as companhias de seguros, as imobiliárias, os stand’s automóveis, as funerárias, os hiper-mercados, etc.
Todos casados uns com os outros, comiam tudo e não deixavam nada!
      E porque o povo pertencia à terra e a terra estava-lhe a ser tirada e substituída por uma azáfama que o estava a fazer “perder-a-cabeça”, é que o termo stress apareceu em Almada.
      Aparentemente, até parecia que no concelho tinha deixado de haver pobreza e miséria e que agora estava tudo bem, como se houvesse trabalho para todos, bens de primeira-necessidade para todos, sistema de saúde de qualidade para todos e sempre alguém pronto a tratar das coisas que estavam mal, tal e qual como levavam as massas a acreditar. Isso era aparência para turista. Para acalmar a população e para ela não pensar, nem sentir tanto, faziam-lhes comemorações e decorações de rua nas épocas festivas e distraiam-nas com actividades municipais, nas quais, dezenas e centenas de milhares de euros (ah, que desgraça aquele €uro!) eram queimados, por exemplo, com fogos de artifício, paradoxal e manipuladamente, perante o aprovamento do próprio povo!
Distraiam as pessoas com concursos e desportos televisivos; esperançavam-nas com o totoloto e o totobola, com os quais chupavam centenas de milhares e até milhões por semana à massa populacional, iludindo-a de que qualquer um que se fosse jogando durante toda a sua vida, algum dia, certamente, teria a sorte a bater-lhe á porta! “Ofereciam-lhes” o Big Brother na televisão, para o qual milhões de pessoas ligavam para votar, sendo as chamadas telefônicas cobradas na altura com a tarifa de 0,30€ e 0,45€ cada uma (faça-se a conta por baixo: 0,30€ x 2 milhões de telefonemas = 600.000€. Isto multiplicado por várias semanas de concurso e imagine-se o lucro que estes programas faziam chupando o dinheiro de um povo tão necessitado e carente)!
E com isto lá se ia espalhando distração com um sem número de actividades que, por um lado, elevavam a consciência de uns poucos que olhavam tudo isto como revelações do que realmente estava a acontecer e qual as verdadeiras intenções, manipulações e artimanhas dos Senhores do Mundo; mas que, por outro lado, adormeciam os restantes, que eram a maior parte da população. Fossem lá dizer isto aos adormecidos!? Todos, individualmente, achavam estar despertos para a vida e para a morte e bastante conscientes do que se passava dentro do funcionamento da sociedade... e por isto tudo ser uma grande mentira e uma enorme ilusão é que resolvi escrever o que escrevi.
Até parecia que todos sabíamos andar no mundo, sabendo o que era a vida e a morte, de onde vínhamos e para onde iríamos.
      Aqueles a quem, normalmente, chamávamos de “eles” (e quem são eles senão nós mesmos que admitimos que as coisas continuem como estão?) não davam a conhecer ao turista a realidade do Carocha, nem de outros mais que também habitavam em situação precária, ou pior, e viviam na rua, como animais, comendo do lixo, desprezados praticamente por todos aqueles que se cruzavam em seu caminho. “Eles” não davam a conhecer ao turista a realidade de algum desempregado que, sem dinheiro, caía no ciclo vicioso de nem sequer conseguir meios para procurar trabalho, o que, evidentemente, proporcionaria a queda em riste da sua própria condição social; nem tão-pouco se referiam á realidade da quantidade de drogas leves e pesadas que eram trazidas para Almada, traficadas e consumidas na cidade e arredores, nem da quantidade de lares destruídos, ou para sempre tocados por aquela epidemia; nem das drogas legais com que enfrascavam a população tornando-a sonâmbula; nem falavam do preconceito entre as classes, nem dos bairros-sociais ao redor de Almada (mais apropriadamente chamados de bairros exclusão social) e das realidades que lá se viviam, onde a droga, a criminalidade infantil, o desemprego, a violência doméstica e a violação de uma série de direitos humanos eram o pão-nosso-de-cada-dia para muitas das pessoas que lá viviam; nem revelavam ao turista a realidade dos empresários que fechavam as portas das suas empresas, metiam os empregados na rua com ordenados em atraso e fugiam a meio da noite em camiões carregados com toda a maquinaria da empresa - mudando-se para os países consumidos do hemisfério sul do planeta (em África e na América do Sul), onde a mão de obra era extremamente mais barata - deixando em Portugal milhares de pessoas desamparadas e sem trabalho. Daqueles países para onde eles se mudavam era de onde vinham maior parte dos imigrantes que chegavam a Portugal e à Europa em geral, fugidos da mão-de-obra barata que, em seus paises, não lhes fornecia qualquer prespéctiva de melhorar a sua própria qualidade de vida, nem a de seus filhos, nem tão-pouco a do país - aqueles empresáros desonestos e sem consciência eram muitas vezes olhados naqueles países como benfeitores e até como santos, pois, haviam proporcionado em tais lugares, sem dúvida, a oportunidade de emprego e melhores salários do que os existentes a meio de tanta miséria que por lá se vive: as pessoas que assim os aclamavam não tinham consciência do que faziam, por não terem total consciência da sua própria pobreza: simplesmente não tinham meios de comparação entre as suas tristes realidades e as realidades dos países chamados de primeiro-mundo, nem do que haviam feito tais benfeitores nos seus países de origem. Os nativos dos chamados países de terceiro mundo, ao serem pagos ao mês o que no hemisfério norte se recebia ao dia, fabricavam ali produtos que custavam pouquíssimo ao empresário, para depois serem vendidos por aquele "santo-homem", por mil vezes, dez mil vezes mais caros nos paises consumidores do que o real preço de custo.
      Longe da paisagem europeiezada que procuravam transmitir, a pobreza e a miséria, a fome material e a sede espiritual continuavam a existir nos grandes centros urbanos de Portugal e do mundo... e Almada não era excepção. Eu até poderia acreditar que, a então presidente da Câmara Municipal de Almada e a sua equipa de vereadores, se esforçassem para lutar contra aquele tipo de situações, só que os frutos eram, compreensivelmente, limitados, já que eles próprios estavam inseridos, eram pressionados e controlados por forças e interesses de perspectiva mundial. Mas a verdade é que eu próprio não sabia até onde chegava a boa-vontade de tais políticos.
      Vivia-se a instauração da Nova Ordem Mundial de controle tecnológico a caminhar para o absoluto!
      Também na rua Dom José de Mascarenhas encontrei daqueles antigos operários e combatentes revoltados interiormente porque viam que tinham lutado por um país que, além de lhes virar as costas, ainda por cima estava a ser vendido ao estrangeiro por um regime-após-regime político que, cinicamente, dizia ter ultrapassado uma ditadura. No entanto, bastava abrir um pouco os olhos e ver que em mais de trinta anos de “liberdade”, somente dois partidos políticos haviam subido ao poder em sucessões de quatro anos: o P.S. (Partido Socialista) e o P.S.D. (Partido Social Democrata). Metaforicamente, o que eles haviam feito fôra mudar o nome da “Ponte Salazar” para “Ponte 25-de-Abril” (a qual atravessava o rio Tejo, unindo Almada, na margem sul e Lisboa, na margem norte), só que esqueceram-se de a atravessar para o outro lado e Portugal continuava do mesmo lado onde sempre estivera: o lado da ditadura, desta vez praticada de um modo ainda mais dissimulado e cínico.
      Continuei andando e quando dei por mim estava no Jardim do Castelo de Almada, topo da cidade, aparentemente, longe de tudo. Tinha atravessado toda a rua Dom José de Mascarenhas absorto nos pensamentos que me iam surgindo, conforme ia dislumbrando tudo naquela rua como se fosse a primeira vez que estivesse a contemplá-la num Sábado de manhã. Trepei pelas estreitíssimas ruas de Almada-Velha, apoiando os pés nas tortas calçadas de pedras pretas que ainda não tinha sido coberta por alcatrão - o que veio a acontecer mais tarde - polidas pelas antigas carroças dos burros, pelos milhares de pés que já as haviam pisado e pelas modernas rodas com pneus.
Por ser Sábado de manhã, ainda havia muita agitação na cidade: barulho de máquinas a trabalhar na restauração de canos de água e esgotos no sub-solo, assim como na restauração de prédios; imensas pessoas na rua a fazerem compras; e muito automóvel em movimento: poluição sonora e atmosférica, no mínimo incomodativa. Por isso soube-me bem chegar lá acima.
      O jardim estava calmo. Somente um senhor, já com alguma idade, passeava por ali, devagar, de mãos atrás das costas, como quem nada espera. Também ali, no meio da antiga arquitectura que ainda pintava o jardim em paredes de branco-cal, bordadas a tijolo pequeno vermelho escuro, o lixo mostrava o que tinha sido a noite anterior: alta farra! Ou melhor, baixa farra! E se não fora farra, pelo menos fora moca, bebedeira, alienação e insanidade! A diferença é que ali viam-se muito mais garrafas e imensos indícios de terem  sido feitos e fumados muitos charros. O cheiro a urina fazia-se sentir, e ali e acolá (como não podia deixar de ser) alguns vomitados!
Aquele jardim, por ser no cume da cidade, era utilizado como ponto de refúgio por aqueles que viviam marginais á sociedade, ou a si mesmos e por aqueles que por nada mais terem que fazer, ali se dirigiam para espreitar no miradouro o abismo que caia até ao Ginjal, na beira do Tejo. Espreitavam o miradouro á procura de qualquer sonho que o Tejo e Lisboa lhes podessem oferecer. Alguns, por nada verem, ou verem coisas não muito agradáveis, já se haviam lançado dali ao encontro do Eterno! Devido ao jardim ser no topo de uma colina e também devido áquele ambiente de consumo de venenos, o pequeno parque infantil ali existente raramente era utilizado por crianças, o que fazia com que aquele espaço - devido á falta do riso das crianças - fosse um local de ambiente mais pobre.
      Passado pouco tempo de eu ter chegado, os empregados da Câmara Munícipal de Almada vieram e lavaram tudo à mangueirada. Tudo mudou: o verde ficou mais verde. O ar encheu-se com o cheiro da terra molhada e o próprio ambiente ficou mais fresco. O dia, aquele, prometia, novamente, muito calor. O Sol iluminava tudo e as cores vivas já beijavam a realidade do nosso viver. Reparei em especial numa das árvores onde o Sol batia de chapa e a qual emitia um verde claro tão intenso que dir-se-ia que possuia luz própria (e possuía, mas isso é outra história. Mais tarde, aquela belíssima árvore fora cortada junta com outras para dar lugar a um restaurante panorâmico de preços não acessíveis a todos. Ou seja, exploração comercial privada de patrimônio público porque o dono do restaurante era primo da Presidente da Câmara Municipal). Linda era também, pela manhã cedo, a centenária árvore que ali vivia: pelos meus cálculos, a sua raiz devia rondar os vinte metros de diâmetro, saindo da terra em braços de força inimaginável, aos borbotos e com formas algo fantasmagóricas. O nome daquela árvore já o esquecera, mas várias gerações tinham aceite e ainda aceitavam o irrecusável convite de a trepar por ali acima. Ouviam-se alguns melros que apanhavam insectos no meio da relva e as palmadas das asas das andorinhas que voavam quase em silêncio, virtuosas, pelo meio de corredores aéreos que o próprio design do jardim formava. De vez em quando o zumbido das abelhas e dos abelhões, das moscas e de outros insectos voadores deixavam-se notar no meio da melodia natural. Era relaxante ouvir o som próximo da água a bater na pedra da bica, na qual as vespas, também elas, iam beber. Aquela era considerada por muitos a melhor água de Almada; possivelmente, porque era a que mais esforço exigia para ser bebida - principalmente em dias calororsos como aquele era. Quando a surviamos após a longa e inclinada subida, sabia como a água de um óasis que se encontraria no meio de um deserto, de tão fresca, límpida e viva.
      Aproveitei e flui-me naquela atmosfera para criar, escrevendo. E criei numa agradável inspiração, ao sabor duma leve brisa fresca que passava e que pouco mexia as folhas... ao som dos pardais... dos milhafres que, lá no alto, piavam o seu ponderio por aquelas bandas, planando imóveis sobre a terra esperando a oportunidade de caça oferecida por algum roedor, ou por alguma pequena cobra que os fizésse picar o vôo desde as alturas até ao mato rasteiro e emaranhado que se precipitava pela arriba-fócil abaixo. Também me era oferecido o grajar das gaivotas que, tantas vezes, desafiavam o território daqueles predadores. Tudo o que eu precisava para me inspirar estava ali.  
Ouvi também o barulho dos carros a andarem na ponte 25 de Abril (a tal antiga ponte Salazar). Com perto de dois quilómetros de comprimento, por ela, em pouco tempo, fazia-se a travessia do rio Tejo, entre Almada e Lisboa: o sul e o norte do país. Os almadenses já estavam tão habituados ao som provindo da vermelha ponte, que aquele se espalhava por toda a cidade e os almadenses raramente o ouviam, já que o esqueciam devido à sua constante presença. Abafado durante o dia pelo constante barulho urbano, ele lá continuava como pano-de-fundo, somente á espera de uma oportunidade para se fazer notar, como acontecia durante noite nos locais mais calmos de Almada, ou durante a madrugada em praticamente toda a cidade... e a mim, aquele zuummm!!! fazia-me lembrar um enorme enxame de abelhas.
Entretanto, no jardim do castelo, os anos que muitos tinham levado para lá - já medidos em décadas - de consumo de drogas, álcool, homossexualismo depravado e de prevaricações em geral, não se lavava com a água da mangueira... e de uma, ou outra maneira, ali permanecia a bafurada dos comportamentos de consciência mais baixa.
      Alguém dormia num dos bancos do jardim, em posição fetal. Pensei que fosse um que não tivesse suportado a moca, ou a bebedeira da noite anterior... mas não. Era um homem que aparentava estar na casa dos quarenta e que, aparentemente, não tinha casa. Aparecera no jardim do castelo no princípio do Inverno passado e por ali ficara. Dormia ali, comia ali (quando comia)... mais um como qualquer um, com a sua história de vida.
      Enquanto eu escrevia qualquer coisa que já não me lembro o quê, chegaram os primeiros frequentadores habituais do jardim para fumarem a primeira ganza do dia: jovens com quinze, dezoito, vinte, vinte-e-poucos anos e outros até mais velhos, maior parte desempregados, vivendo ás custas dos pais e que por ali paravam todos os dias á volta do mesmo motivo: consumir alguma coisa que os fizésse sopurtar melhor o dia-a-dia, alterando a sua precepção da vida. Maior parte toxicodependentes que já não consumiam drogas duras, mas que tinham como príncipal objectivo do dia fumarem haxixe e “encherem a cabeça”.
      “- Não fazem nada da vida!” - era o que sobre eles se dizia. Mas uma pessoa quando acordava de manhã, alguma coisa haveria de fazer; nem que fossem coisas menos saudáveis, ou de contribuição não desejada para com os finalidades sociais da comunidade em que estavam inseridos... mas, certamente, alguma coisa haveriam de fazer.
      Maior parte, rapazes espertos... e alguns inteligentes... uns quantos de bom coração... mas que não tinham, em regra geral, mais conhecimento do que aquele que lhes era oferecido através da televisão e pela própria experiência de vida: futebol. Sexo. Mulheres. Drogas. Motas e carros. Tropa. E mulheres e sexo. Ou alguma notícia mais escaldante. Jogo. Drogas. Filmes. Sexo.
      “- E há mais alguma coisa de interesse nesta vida?!”- perguntavam-me.
      Não. Para eles não havia coisa alguma a mais além daquilo que lhes era dado pelo conceito social e televisivo, ou o que lhes era oferecido pelos sentidos. Não procuravam conhecimento, logo, a sua ignorância e a sua estupidez notavam-se a olhos vistos.
      Mas aquela falta de lógica natural acontecia também com a classe operária, com os comerciantes, com a classe-média aspirante a burguesia, com a própria burguesia, com a classe política, financeira, etc. Como o deus daquele época era o dinheiro e com ele a ciência, maior parte do tempo de existência daquelas pessoas era voltado para a distração em relação á ignorância que possuiam em relação á sua própria existência; logo, a sua atenção era voltada para a obtenção do vil-metal e do bem-material... ou através do trabalho, ou de artes  ilícitas... mas não concentravam suas existências para o auto-conhecimento e consequente descoberta da vida e seu significado; por isso, a ignorância não assumida perante a existência e a condição humana predominava, apesar de parecer que todos sabiam lá andar. Também a classe governamental tinha direito a viver no seu mundo de ideias curtas, sem pensar no sentido da vida, tal e qual como o pessoal do Jardim do Castelo de Almada, só que com outro poder de alcance, de movimentos e consequências, evidentemente, muito mais abrangentes e preocupantes.
      Mas ambos preferiam falar de outras coisas do que falar do tema mais grandioso que alguma vez existira e haveria de existir: a Natureza das coisas! O significado das coisas! O significado da Vida! Da Morte! Do Universo! E da existência de todas as coisas em geral...
      ... e porque a ignorância se espalhára a todas as classes sociais, é que o país e o mundo estavam como estavam. Está claro que a grande parte das pessoas tinha consciência que estava em cima de uma bola de terra a viajar pelo vazio do espaço a mais de cem mil quilómetros por hora (será que tinham?!!!), só que esqueciam-se disso e preferiam centrar a sua atenção nas coisas mais pobres da vida, ou seja, no lado material da sua existência, descorando por completo o seu universo interior. Em consequência daquilo, a vida no planeta estava a deteriorar-se, já que as pessoas andavam a imaginar coisas mais mortificantes do que vivificantes devido à educação que possuiam, que não lhes possibilitava fazer melhor do que aquilo mesmo.
      Ora, aqueles rapazes não eram dados ao tipo de vida social e cultural, nem à vida familiar, ou profissional, que acontecia em Almada e por isso, refugiavam-se no alto da cidade, no jardim do castelo.
      “- Quando os meus pais morrerem, o que vai ser da minha vida?”- perguntavam-se perante rasgos de consciência. Um até me chegou a  confessar:
      “- Quando estou a trabalhar sinto que não estou a aproveitar bem o tempo. Ou melhor, sinto que estão a roubar-me tempo precioso de vida que podia utilizar para descobrir-me a mim próprio e para fazer  coisas que eu gosto. Mas quando não estou a trabalhar parece que não sei como aproveitar o tempo livre. Olha, fumo ganzas, jogo ás cartas, bebo umas cervejas e estou com o pessoal, é o que eu faço. Mas sei que isso é completamente errado e vazio.”
      O que na realidade acontecia era que aqueles jovens já tinham trabalhado em muitos sítios e já tinham feito muita coisa e tido muitas oportunidades de construir qualquer coisa em suas vidas... oportunidades apareciam sempre... só que acabavam sempre por deixar para trás cada uma delas devido à falta de motivação para construirem, ou terem, alguma coisa na vida... o que era paradoxal, pois, coisa que faziam era cobiçar o lado material da vida (carros, telemóveis, roupas, jóias, etc.)... mas, penso eu, se não lutavam, nem sequer, para obter o tal material que cobiçavam era porque, verdadeiramente, aquelas coisas não tinham para eles qualquer valor! E deixavam os tais trabalhos para trás  devido à falta de motivação que começavam a sentir pelos mesmos, em resultado de estarem sempre a fazer, repetidamente, a mesma coisa desinteressante, mecanicamente, em linhas de montagem... ou por estarem a ser explorados por empresas multinacionais com ordenados irrisórios, que cobriam um terço do custo de vida em Portugal... ou porque os patrões de pequenas, ou médias empresas descarregavam neles a frustração que sentiam como cidadãos do mundo, tratando-os sem respeito algum pela pessoa e pelo trabalhador... ou porque as pessoas com que trabalhavam mais pareciam animais em competição pela carne, fazendo, sem escrúpulos, de tudo para subir mais um posto, cair nas graças do patrão e ganhar mais algum dinheiro, poder. Muitos deixavam de trabalhar, até mesmo, devido à destruição ambiental e mental em que se sentiam a participar e/ou a serem vítimas. E como não queriam, nem se sentiam confortáveis em participar em tais coisas, saltavam fora! Quer dizer, razões não faltavam para justificar a sua desistência dos caminhos que lhes apareciam e voltar a estagnar no Jardim do Castelo... havia sempre qualquer coisa! Preferiam ficar desempregados, desintonizados do movimento social que os rodeava, ouvir os pais a discutir com eles e a chamarem-lhes “uns bandidos, uns marginais, uns vadios” e outras tantas coisas nada agradáveis de ouvir sobre a nossa própria pessoa, do que lançarem-se na vida e descobrir o que aquela tinha para oferecer. Também haviam aqueles que, simplesmente, não queriam trabalhar, por preguiça. Mas maior parte deles sonhava em construir qualquer coisa: uma família, uma casa. Porém, sem os desculpar, eu compreendia-os: uma vez que o trabalho, além de ser um meio de sobrevivência, era também um meio do indivíduo se afirmar e de construir a sociedade, o trabalho deveria ser algo em que as pessoas dessem largas ao seu espírito criativo, em que se sentissem confortáveis, realizadas e felizes... só que tal não acontecia. Ora, se as pessoas se sentissem descontentes, desconfortáveis e frustradas com aquilo que, obrigatoriamente, tinham de fazer para ganhar dinheiro para sobreviver, então, o resultado seria uma sociedade degradada em termos físicos, morais e psicológicos... ao trabalharem, estavam a construir a sociedade... e ao construir a sociedade estavam a fazer da sociedade aquilo que sentiam e pensavam enquanto estavam a trabalhar... e se se sentissem descontentes, desconfortáveis e frustradas, estariam, evidentemente, a contruir uma sociedade, também ela, descontente, desconfortável e frustrada. Infelizmente, era aquele lado negativo que predominava naquela civilização, que mais parecia uma selva!
E depois, aqueles rapazes e raparigas ficavam por ali, a fumarem ganzas e a jogarem ás cartas. Deixavam suas vidas cair num  caos maior do que aquele em que a própria sociedade se encontrava.
      Aqueles jovens eram o que, a minha visão poética sobre a vida me mostrava, autênticos “resistentes-desistentes”: a resistência que faziam (e maior parte deles não tinha consciência daquilo) era contra aquele tipo de sociedades que desde sempre haviam oprimido, controlado e destruido milhões de pessoas; era contra aquele tipo de sociedades em que existe sempre alguém que se sente digno e em posição de mandar e controlar os outros. Porém, aqueles jovens não sabiam como executar tal resistência e acabavam por se destruir a si próprios, ao desistirem, ficarem inertes, consumindo substâncias que lhes envenenava o cérbero e, pouco a pouco, os bloqueava mental e fisicamente. Digamos que eram como que uma resistência frustrada, pois, ainda não tinham maturidade suficiente para compreenderem que, se queriam mudar alguma coisa e fazer uma resistência inteligente contra uma sociedade que recusavam, o tinham que fazer por dentro, inseridos na sociedade que abominavam.
      A solução seria acabar com as autoridades. Acabar com todos aqueles que tinham a prepotência em pensar que podiam exercer autoridade. Os postos de autoridade eram ocupados por gente que não sabia exercer a autoridade; logo, a autoridade era deficientemente exercida. Se a autoridade fosse bem exercida, todos receberiam - desde que nasciam - boa educação, boa orientação, bons exemplos e deste modo, todos se tornariam dignos de ocupar postos de autoridade e as autoridades acabariam por não existirem mais indivíduos em quem exercer tal autoridade. Mas como ainda não se havia chegado a tal nível de maturidade espiritual, antes de acabar com as deficientes autoridades, perguntar-lhes-íamos:
      “- Sabem vocês de onde vieram? Ou o que estão aqui a fazer? Ou para onde irão quando morrerem? Ou o que é o Universo? O que são vocês? Não sabem? Então, homens perdidos e cegos, arrogam vocês dizer aos outros por onde eles hão-de ir, o que devem fazer, ver e pensar?”
      A solução seria acabar com eles! Acabar com todos aqueles que ousavam em mandar, em controlar!
      E, frizo: disse “acabar” e não disse “matar”!... e frizo isto para afastar algumas interpretações que certas mentes possam elaborar. Aliás, todos os chamados Grandes Livros Espirituais do Mundo ensinavam que não se deveria matar... mas também ensinavam ao que havia um tempo para tudo! Aqueles livros, afinal, lembravam por escrito, ao mesmo tempo, os mais elevados (e também os mais terríveis) exemplos de comportamentos humanos, os quais deram origem às religiões do mundo. Só que, por sua vez, foram distorcidos, com o passar do tempo, tanto ao nível da interpretação sobre aquilo que estava escrito, como também fisicamente adulterados adiccionando idéias estranhas aos textos originais, ou a através da estúpida censura de algumas idéias neles expressas... tudo em prol dos interesses de uns poucos com fome de poder e controle. Mas tais textos, quando bem interpretados, ensinavam-nos isto:  Amar! Eles tinham sido criados para elevar a nossa consciência e a qualidade de vida das nossas civilizações e ensinavam-nos que haviam certas coisas que eram melhor não colocar em prática, apesar de possuirmos o poder para tal... e isto se quiséssemos caminhar no sentido do auto-conhecimento... porém, até aqueles livros, graças à ganância de alguns individuos, foram motivo de chacinas, o que acabou por afastar maior parte da população mundial dos verdadeiros e livres estudos espirituais, naturais e humanos, que as Altas Inspirações do Universo nos haviam legado para nosso próprio bem-estar, assim como para o bem-estar das formas de vida que nos circundavam. Os estudos que se faziam naquele tempo acerca do auto-conhecimento era sempre coberto pelo manto de um qualquer "ismo" que os limitavam a uma visão finita, presa a um dogmatismo particular, ou instituicional, de quem se achava prepotente de pensar que a sua interpretacão sobre a Vida no Cosmo é que era a correcta.
      Mas a solução era acabar primeiro com as autoridades que erguiam outras autoridades, ou seja, acabar com os Senhores do Mundo, os donos do mundo que ninguém conhecia e que geriam o destino do planeta como que se de marionetas se tratásse, sem que ninguém os visse na rua, na televisão, ou fosse onde fosse. A existência dos Senhores do Mundo era ignorada por maior parte da população mundial. Por exemplo: naquele tempo quem tinha maior influência e poder mundial - não fosse aquela a nação que mais força fazia para nascer a centralização do poder planetário num determinado ponto geográfico - eram os E.U.A. (Estados Unidos da América). As pessoas mais desatentas eram levadas a pensar que quem mandava nos E.U.A. era o presidente. Porém, os mais atentos sabiam muito bem que o presidente daquela nação não era mais do que uma marioneta que dava a cara ao mundo para que certas entidades – como a Maçonaria, o Grupo Bilderberg, a Comissão Trilateral, Bohemian Grove, etc. -  podessem, através dele, através do Parlamento Europeu e da Organização das Nações Unidas - jogar o Grande Jogo Mundial na direção da Nova Ordem Mundial.
      Aos Senhores do Mundo não lhes interessava incentivar os indivíduos da população mundial a buscarem o sentido de suas vidas: despertar espiritualmente estava em oposição às intensões materialistas, totalitaristas,imperialistas e tirânicas da agenda global.
      Portanto, o pessoal do Jardim do Castelo de Almada, quando não estava a trabalhar, tal e qual como o outro me confessara, não sabia aproveitar o dia da melhor maneira, nem sabia o que havia de fazer; nem tão pouco se lembrava em ir obter conhecimento sobre si próprio, sobre o planeta em que vivia, ou sobre a história do seu país, ou do mundo, a fim de compreender um pouco melhor o contexto em que estava inserido. Simplesmente, não tinham perguntas sobre a vida, ou se tinham, pouca importância lhes conferiam e nem sequer se davam ao trabalho de aprender um pouco mais sobre a sua própria existência, pois, já acordavam e saìam de casa com a idéia de se distraìrem da frágil realidade em que viviam. Com isto, ocupavam o tempo com coisas espiritualmente pobres, como jogar ás cartas, fumar charros, beber cerveja, falar à toa conversas vazias e elaborando algumas vezes bons planos quejamais se transformavam em acção. E com aquela postura davam força áqueles que tinham a prepotência em querer mandar, porque até parecia que o povo  não sabia o que fazer se não tivesse alguém a mandá-lo fazer. Ou que não era capaz de fazer alguma coisa bem feita se não tivesse alguém a comandà-lo.
Nas condições daquele momento, isto era verdade.
Mas havia uma obra mundial pela qual tantos abdicavam de ter uma vida própria, ou, até mesmo, abdicavam da própria vida: acabar com os poderosos e alcançar uma amplitude de consciência a nível indivídual e ao nível social de mestria, em que ninguém precisasse de dizer a ninguém o que tinha de fazer, pois todos saberiam muito bem o que deveriam fazer a fim de contribuirem para um próspero e vivificante desenvolvimento da verdadeira qualidade de vida indivídual e da comunidade!
      Porém, através de mirabolantes estratégias, os Senhores do Mundo distraiam o indivíduo daquilo que mais obviamente deveria ser o centro das suas atenções: o milagre da existência da vida e, mais ainda, da consciência que o indivíduo possuía sobre a sua própria existência! O resultado daquela tomada de consciência seria a elevação do individuo a parâmetros de vida mais elevados, sem ter necessidade de ficar sujeito a forças governamentais dominantes e controladoras, pois, dentro daquele nível de maturidade humana o individuo teria perfeita consciência da sua responsabilidade social e as suas acções isso revelariam.
      Aquela lavagem cerebral era tão eficaz que o indivíduo se entregava de livre vontade á dessimulada escravidão todos os dias de sua vida, caminhando entre o rebanho dos transportes públicos, por vezes com vontade de se revoltar, mas sem motivação para o fazer, ou sem coragem... ou, pior de tudo, sem um alvo concreto a atingir!
      Algum tempo depois de eu estar no jardim, os jovens vieram para junto de mim e ali contaram a noite da véspera:
      “- Ontem fui para Lisboa!” – começou um.
      A noite de Lisboa era considerada por muitos como das  melhores noites da Europa. De pé, de frente para aqueles que estavam sentados num banco junto de uma das maiores árvores do jardim, ele lá continuou:
      “- Andei ali pelo Bairro-Alto mais o pessoal. Bebêmos umas ginjas numa tasca e depois fomos até ás Docas...” – as Docas eram um conjunto de bares e pequenas discotecas á beira-rio, junto de uma marina, quase por baixo da ponte 25 de Abril. “- Andámos por lá a vêr as malucas... boas comó milho!” - depois parava por momentos como que a lembrar umas e outras que tinha visto, para depois continuar:
      “- Mãezinha do céu... aquilo é só mulheres. Um homem até fica maluco! Depois, aí por volta da uma da manhã fomos até ao Alcântra...” - discoteca tecno no bairro Alcântra – “... tive de pagar  dez euros para entrar.” – e ria enquanto contava que tinha gasto cinquenta euros naquela noite e que bebêra e fumara até não poder mais. Ora, para se ter uma idéia, naquele tempo, uma carcaça (um pequeno pão) custava cerca de vinte e cinco cêntimos... e aquela era a despesa de um jovem desempregado numa noite de fim-de-semana. Como ele arranjara o dinheiro? Vendendo haxixe!
      Outros tinham ficado por ali mesmo, no jardim, a jogar às cartas, a fumar ganzas e tabaco e a beber cervejas de litro, as quais, passado pouco tempo de as irem buscar lá em baixo nas tascas de Almada-Velha, ficavam quentes. Haviam-se sentado em cima da raiz de umas das grandes e centenárias árvores, na qual todos haviam ficado durante toda a noite.
Um outro contou que tinha ido a uma “festinha” de transe-psicodélico, onde metera pastilhas extasy e um selo de L.S.D. e evidentemente fumara uns charros e bebera qualquer coisa alcoólica à mistura. Sobre estas “festinhas” de transe-psicodélico, ou sobre as raves é que o povo em geral era completamente ignorante, uma vez que os mais velhos, ou os que estavam fora dos círculos daquela nova onda, nem ouviam falar delas, ou se ouvissem, não faziam ideia do que se tratava, ou quando e onde aconteciam.
Falaram, também, sobre alguém que estivera no meio de uma briga feia, de onde saltaram facas e pedras, o que jà era normal em Almada, numa sexta-feira à noite.
      Como o ambiente já não estava tão propício à escrita, resolvi não só mudar de sítio, como abandonar o jardim.


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