terça-feira, 25 de setembro de 2012


CAPÍTULO 8

         A segunda coisa mais complicada de lidar que eu encontrei na vida, foram as relações humanas.
A primeira fui eu mesmo.
Era muito complicado ser eu e ao mesmo tempo encontrar a maneira correcta de agir, a maneira correcta de falar, assim como as palavras certas a utilizar em cada momento e em cada situação afim de não prejudicar os outros, de encontrar a harmonia e o equilíbrio na relação comunicativa de mim para com eles e deles para comigo e ao mesmo tempo, caminhar na direcção da minha própria felicidade. Como se costumava dizer: uma palavra “fora-do-sítio” e toda a comunicação e toda a harmonia comunicativa da relação ía “por-água-abaixo”.
Difícil, difícil era encontrar a via do meio, o meio termo das coisas, das situações e da vida.
Coisa que eu observei é que todas as pessoas, incluindo eu, procuravam a felicidade, embora muitas delas obtássem por utilizar caminhos muito longos e lentos para a alcançarem, muitas vezes fazendo sofrer as pessoas que se cruzavam em suas vidas.
Observei muitas vezes que uma pessoa magoava outra, não porque o desejasse fazer, mas porque a sua visão da vida era diferente da visão da vida que havia encontrado na outra pessoa, em determinada situação, num determinado momento - e não possuía sabedoria o suficiente para lidar com tal diferença. Até podia ser que, em outra situação, em outro tempo, a visão das duas se encontrasse em harmonia e a vibrar na mesma frequência. Mas perante tal hipotética situação, cada uma agia de modo divergente, agia do modo que achava mais justo, afim de restabelecer a alegria e a harmonia dentro do seu universo de sua visão de vida pessoal.
Cada pessoa agia, porém, de um modo ruidoso para com a outra pessoa quando tentava impor sua visão de vida à visão de vida da outra, o que dava a entender a cada um dos lados que o outro lado é que estava a ser injusto, já que não compreendia nem aceitava a visão da realidade alheia e não estava a escolher agir segundo o padrão que o outro achava que ser bom e justo.
Em minha visão de vida, o que acontecia era que ambas as partes procuravam ser justas e boas, só que, evidentemente, só o conseguiam fazer dentro dos limites que a sua visão sobre a vida alcançava, o que muitas vezes não se enquadrava dentro do campo de visão sobre a vida que a outra parte abrangia; o que bastava para que cada um dos lados começasse a colocar em causa a atitude da outra pessoa sem dar hipóteses a si mesmo de abrir sua mente e seu coração a novas prespectivas de vida. Com isto, bastava que um dos lados deixásse de ouvir, para deixar de haver harmonia na comunicação entre ambos, resultando acusações, ressentimentos, raiva e ódio, ou até mesmo violência verbal, física e morte.
Todas as pessoas procuravam ser justas, boas e verdadeiras, só que, os conceitos de bem e de mal eram coisas subjectivas: o que para uns era bom, para outros era mau... o que era bom para uma pessoa num determinado lugar, numa determinada situação, num momento, em outro lugar e em outro tempo e com outras pessoas (ou talvez até com as mesmas), passava a ser, para a mesma pessoa,  mau. Era preciso despertar a Sabedoria Inata para conseguir discernir estas diferenças e não viver segundo regras rígidas e inflexíveis para com todas as situações. De cultura para cultura o bem e o mal variavam: o que numa cultura era uma coisa banalíssima e corriqueira da vida, em outro ponto cultural do planeta, era motivo de condenação à morte.
O bem, geralmente e a nível mundano, definia-se como aquilo que não ia contra os parâmetros sociais, políticos, religiosos e culturais em que o mesmo bem era definido.
Porém, a um nível mais elevado de consciência, o bem definia-se como tudo aquilo que transportava o indivíduo para a felicidade, para a harmonia, para o respeito, para o amor, para o humor, para a liberdade, para a saúde e para tudo aquilo que fosse ao mesmo tempo benéfico para o indivíduo e para o todo em geral.  Afinal, a verdadeira felicidade era a capacidade de fazer os outros felizes, já que o amor não era egoísta, mas generoso. Por outro lado, o bem poderia não ser nada daquilo, pois, se puxássemos pela imaginação, conseguíamos sempre encontrar o oposto das coisas, contradições e dicotomias que deitavam por terra todas as verdades aparentes.
Essencialmente, o bem e o mal eram subjectividades e interesses.
Aliás, o bem e o mal nem sequer existiam: eram conceitos introduzidos pela cultura, pela política, pela religião, pela ciência, etc.
Em caso extremo... num exemplo extremo sobre a relatividade do bem e do mal... se, por exemplo, num dado instante, o planeta Terra explodisse e deixásse de existir na forma em que o conhecíamos e passasse e existir aos bocados, pairando aos pedaços no vazio do espaço, o que é que seria? Bom, ou mau?
Na prespéctiva humana seria terrivelmente mau, já que, em princípio, não restaria ninguém vivo.
 Mas se tal acontecesse para garantir a sobrevivência dos demais corpos celestes do Sistema Solar, para manter o equilíbrio das forças gravíticas dentro do mesmo e o equilíbrio de outros sistemas estrelares e planetários à volta do Sistema Solar, então, teria sido uma coisa bastante boa. Possivelmente, o explodir do planeta Terra até tivésse contribuído para a sobrevivência de outras civilizações, em outros planetas, em outros sistemas... Neste caso, o bem e o mal evidenciam-se notoriamente subjectivos, sujeitos à lei da relatividade.
Tal exemplo, apesar de extremo, mostra que os conceitos de bem e mal não existiam e eram coisas criadas por nós: o bem e o mal tinham a amplitude da nossa Consciência: se a Consciência fôsse infinita, os conceitos de bem e de mal transmutár-se-iam naquilo que resultaria, ou não resultaria, para alcançarmos os objectivos que nos proponhamos a alcançar.
Filosoficamente, tudo é fácil de compreender e aceitar... mas, fizéssem lá compreender e aceitar tal prespéctiva - de que o bem e o mal não existiam - ao coração a uma mãe que vira o seu filho, criança, ser morto na guerra?
Como já vimos, o bem e o mal não existiam e todas as pessoas procuravam ser felizes.
Coisa que eu via acontecer em Almada e em todo o lugar onde fôsse era que se alguém se desviásse, demasiadamente, daquilo que os parâmetros sociais em que estava inserido definiam como correctos, tal pessoa era, moralmente, julgada no meio da praça pelo povo, mesmo que tal pessoa lá não estivesse para se defender. O que acontecia era que, certos indivíduos iam aproveitar tal oportunidade - em que o outro pisara em falso, fora dos conceitos e das leis temporais instituídas naqule ponto geográfico - para se mostrarem, perante a opinião alheia dos seus conterrâneos, que eram justos, bons e verdadeiros, ao defender aquilo que o seu meio social chamava de justo, bom e verdadeiro. Abriam a boca na praça para acusar, difamar e desacreditar o outro que não estava presente. Quem estava presente iria, inconscientemente, partir do princípio de que, quem estava a abrir a boca para acusar e falar do outro tal, era porque não tinha medo que os dedos se voltassem contra ele, pois era uma pessoa justa, boa e verdadeira e a sua vida imaculada de culpa. Logo, não por acções - que falavam mais alto do que qualquer palavra - mas por, simplesmente, ter a ousadia de abrir a boca em público para acusar alguém, ganhava-se a fama de justo, bom e verdadeiro. Tal pessoa ficava a ser temida por os demais porque tinha a ousadia de abrir a boca em público para acusar aqueles que eram “injustos”, “maus” e “falsos”. E aquela era uma fórmula que muitas pessoas utilizavam para entrarem no mundo da política governamental, futebolística, etc.: quando surgia alguém que se tivesse desviado demais dos parâmetros que, instituicionalmente, se achavam correctos, chegavam-se à frente, acusavam os outros e passavam a ser conhecidos e reconhecidos como pessoas justas, boas e verdadeiras, que defendiam as coisas justas, boas e verdadeiras.
O que eu via era que as pessoas falavam e acusavam as outras para afastarem os olhos alheios de si mesmas, para ninguém reparar nos seus podres e poderem ganhar mais poder e mais dinheiro e mais poder e mais dinheiro...
Mas, independentemente de todas estas posturas e comportamentos poderem ser catalogados de bons, ou maus, certos, ou errados, justos, ou injustos, eu sentia que qualquer uma daquelas pessoas estava a dar o seu melhor para deixar de sofrer e encontrar a verdadeira felicidade... tantas vezes à custa da felicidade alheia. E porque buscavam, praticamente todas as pessoas, a felicidade, utilizando métodos menos sóbrios de o fazer, em que prejudicavam os outros e mais cedo, ou mais tarde, a si mesmas? Simples: porque não sabiam fazer melhor!
A educação vivificante de uma verdadeira busca espiritual sobre o sentido da vida baseada numa verdadeira doutrina espiritual de amor era raríssimo encontrar nos meios civilizacionais daquela época. Logo, os indivíduos não podiam ser incriminados por procurar serem felizes utilizando o método que o sistema lhes ensinava desde a mais tenra idade, método tal, baseado nos valores da competição (invés da entre-ajuda) e da acomulação de riquezas (invés da partilha).
Assim sendo, onde se poderia encontrar naquele tempo os verdadeiros valores que faziam as civilizações funcionarem de forma a não produzirem miséria material e espiritual? Maior parte das religiões e dos movimentos espirituais existentes, ora estavam desactualizados em relação ao desenvolvimento tecnológico e intelectual que se vivia, ora eram utilizados como meios de alienar a população dos intuitos empresariais e políticos dos Senhores do Mundo. Logo, onde estavam guardados os verdadeiros Tesouros da humanidade?
Nas Escolas de Mistérios que não haviam sido infiltradas e dominadas pelas forças negativas que procuravam escravizar o mundo com suas ambições imperialistas.

 CAPÍTULO 9

Estás farto da Vida
E já nada faz sentido?

Sai para a rua
E vai vadiar.
Perde-te na vida
Deambula
Sem saber para onde ir
O que fazer
Ou com quem ir ter.

Sente-te doido e perdido
Pois, só doido e perdido
Sentes saudade
E desejo
De voltares para casa
Capaz de sentires
O que é regressar fiel a ti próprio.
  
CAPÍTULO 10

Eu Sou Vida.
e Vida é Amor.
Deus é Amor.
Se Vida é Amor e Deus é Amor,
logo,
Deus é Vida.
Se Eu Sou Vida e Deus é Vida.
logo,
Deus Sou Eu e Eu Sou Deus.

Deus é tudo,
logo,
tudo é Deus.

Tudo são as pedras,
as árvores,
os animais,
as pessoas,
os planetas,
as estrelas,
as galáxias
e todo o Universo.
Se Deus é tudo
e tudo são as pedras,
as árvores,
os animais,
as pessoas,
os planetas,
as estrelas,
as galáxias
e todo o Universo,
logo,
Deus são as pedras,
as árvores,
os animais,
as pessoas,
os planetas,
as estrelas,
as galáxias
e todo o Universo.

O Universo é o corpo de Deus.
O Universo é a manifestação física de Deus.
Não existe parte nenhuma do Universo da qual se possa dizer:
"- Isto não é Deus."
Porque Deus é tudo e tudo é Deus.

Logo,
Eu Sou Deus
a respirar Deus,
a comer Deus,
a beber Deus,
a andar em Deus,
a amar Deus,
a praticar sexo com Deus,
a falar com Deus,
a escrever para Deus...
...porque Deus és tu.

Eu Sou Deus e Deus é tudo.
Logo,
Eu Sou tudo.
E se Deus é tudo,
logo,
Deus és tu e tu és Deus.
E se Eu Sou Deus,
logo,
Eu Sou tu.
Tu és Eu.
Afinal, não há tu,
nem há eu.
Somente a ilusão de que tudo é separado e distinto...
Eu Sou Deus.
Deus é tudo.
Eu Sou tudo e tu também.
Não há dois “tudos”.
Só há Eu.

 CAPÍTULO 11

“- Quem sou Eu?”
“- Eu Sou O que Eu Sou.”

“- Onde estou Eu?”
“- Aqui.”

“- De onde vim Eu?”
“- D’Aqui.”

“- Para onde vou Eu?”
“- Para Aqui.”

“- Que faço Eu Aqui?”
“- Descubro. Lembro.”

“- Descobres e lembras O quê?”
“- O que Eu Sou.”

“- E O que Sou Eu?”
“- Eu Sou O.”
“- Sou O quê?!”
“- O que Eu Sou é O que Eu Sou. Eu Sou O que Sou Eu.”
“- Sou O?!...”
“- Ou A.”
“- A?!”
“- O e A são a mesma coisa. Compreendes que tudo é só Um. A Verdade é conhecida porque experimentas e vives isso mesmo. Logo, não há feminino, nem masculino.”

“- E qual é a Verdade?”
“- ...”
“- Não me respondes?!”
“- Sim, respondo.”
“- E qual é a Verdade?”
“- ...”
“- Não compreendo esse silêncio.”
“- Como mostro Eu a Verdade por palavras? As palavras são o reflexo do espírito neste nível de paradoxos, logo, nunca conseguirão dar a entender os níveis mais elevados de Consciência, de Conhecimento e de Sabedoria em que a dualidade não é conceito. Quando digo “Verdade” implica que existe uma “mentira”. Mas não existe mentira, porque tudo é só uma coisa: tudo existe, logo tudo é verdadeiro. E ao exprimírmo-nos verbalmente sobre a Verdade, deixamos sempre algo de fora que não conseguimos exprimir por palavras e se algo está de fora, é porque não estamos perante a Verdade, mas, no máximo, perante uma parcela dela, uma verdade relativa.”
“- Penso que estou a compreender a ideia que me estás a querer transmitir. Dizes tu que, neste plano, vivemos a verdade relativa, somente um dos reflexos da Verdade. Dizes que não podemos exprimir a Verdade Absoluta por palavras. Então, porque é que estamos aqui a falar sobre Ela?”
“- Quando dizes “palavras” implica que existe “silêncio”. Se dizes “reflexo” implica que existe “sujeito” e “objecto”. Se dizes “nunca” é porque existe “sempre”. E esta realidade paradoxal pertence a este nível mundano, onde as coisas parece que estão separadas, distintas, individualizadas, independentes umas das outras: há o dia e a noite, a chuva e a seca, a sede e o saciar da sede. Em níveis mais altos os paradoxos não existem e por mais que tentemos o contrário, isto é inexprimível em termos mundanos. Ou experimentas, ou não sabes. Intelectualizas por analogias simbólicas e pensas saber. Porém, admira-te, meu irmão, a Sabedoria vem quando desaparecem a inteligência, o pensar, o imaginar, o sonhar e qualquer tipo de concepção mental. A Sabedoria manifesta-se quando desaparecem todos os reflexos desta mesma Sabedoria.” 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012


CAPÍTULO 7

Vista ocidental do caminho do Cais do Ginjal
com a ponte 25 de Abril sobre o rio Tejo.
Foto: António Vitorino
         Saindo do largo de Cacilhas na direcção do Tejo, virei a esquina, à esquerda, para ocidente, entrando no Cais do Ginjal. Em dias de vento, virar daquela esquina era receber o vento dominador que vinha do mar e nos empurrava o peito, instintivamente colocado para a frente, quase obrigando-nos dar um passo para trás. Não naquele dia: o Sol tórrido que me castigava e a quase inexistente brisa, faziam com que pesasse mais nas minhas costas a mochila cheia de apetrechos que me ajudavam a esclarecer de um modo mais objectivo aquilo que eu era: um caderno onde estava a apontar os primeiros ensaios daquilo que viria a ser "Almada dos Meus Olhos"... algumas canetas para não ser apanhado desprevenido... "A Embrieguês da Metamorfose" de Stefan Zweig, pelo qual me apaixonei, pois, como não conhecia o autor, fui apanhado de surpresa pela beleza de sua escrita e pelo enrredo daquela história... um bloco de desenho no qual esboçava algumas ideias... lápis... as chaves de casa... um canivete suíço... o bilhete de identidade guardado num bolso... e algum dinheiro...
         Aquela esquina era feita por um conceituado restaurante que se apresentava como especialista em frutos do mar: peixes e mariscos frescos - tal e qual como acontecia em relação aos manjares ofertados pelos outros restaurantes de Cacilhas - pescados ao largo da Costa da Caparica, de Sesimbra, ou de Setúbal. Alguns daqueles peixes haviam sido pescados por pequenos pescadores que atracavam o barco nos pontões da Transtejo, para depois se fazerem ao mar azul que à minha frente se estendia lá ao fundo, no horizonte de espelho, por baixo da ponte 25 de Abril. Conforme caminhava, a degradação dos edifícios ia aumentando, assim como a quantidade de tag's e os truwap's que os mais jovens haviam aproveitado para pintar nas paredes. Das paredes emanava uma salada ambiental em estilo fluvial e underground. Aquele convite à arte underground era feito pelo fraco laranja-mistério da iluminação de novoeiro, que se estendia pelo caminho quando noturno, mas que agora se destacava em tons castanho-cinza e laranja-cinza de muros antigos, misturados com algum verde escuro nascido de filtrações de água. A antiga fábrica de gelo, um antigo armazém de bebidas com a marca Martini já quase totalmente apagada pelo tempo, a antiga fábrica do óleo-de-fígado-de-bacalhau, antigos armazéns de peixe (alguns raros ainda a funcionarem), todos cinzento-fantasma, contando histórias de quando aquele lugar era rico em movimento, rico em trabalho haviam muitos anos, ainda antes de alguém me conhecer como gente. O Cais do Ginjal era um nome velho e ao mesmo tempo gostoso de ouvir pela sonoridade com que se insinuava na boca.
À minha direita, o rio - um metro abaixo do nível dos meus pés de sandálias - lançava-se suave contra o paredão de cimento armado e verde de velhice, de limos e pequenas algas.
         No primeiro troço do Ginjal andei umas duas centenas de metros até dobrar para o segundo troço do caminho (também com, mais, ou menos, o mesmo comprimento) continuando ladeado à esquerda por, essencialmente, velhíssimas casas de habitação tão degradadas que revelavam através dos buracos que, em tempos idos, as paredes das casas eram feitas com pedragulhos fósseis marítimos de lama petrificada, por ali encontrados. Aqueles pedregulhos haviam sido apanhadas pelos antigos construtores nas margens do rio, depois de, naturalmente, terem caído (ou propositadamente extraídos) da Arriba Fóssil que se lançava, em certos pontos, a mais de cinquenta metros para o céu, ali mesmo á minha esquerda. Erguia-se por trás das construções humanas, embelezada pelo verde da vegetação e pelo amarelo-torrado de suas paredes em contraste com o céu azul de Verão. Aquela Arriba-Fóssil estendia-se desde Cacilhas até à foz do Tejo, continuando para sul durante dezenas de quilómetros, começando na freguesia de Cacilhas, no concelho de Almada e cruzando outra freguesias e outros concelhos, sempre elevando-se a alturas de dezenas de metros.
Algumas daquelas casas do Cais do Ginjal ainda eram habitadas, muito possivelmente, pelos seus últimos inclinos... um armazém era aproveitado pelo grupo de teatro O Olho... havia uma pequena oficina lá mais à frente... mas todas as casas reflectiam abandono, degradação, conflitos de interesses económicos de bastidores. Uma zona com um potêncial tão grande para a elaboração de um enorme, belo e eficaz projecto cultural, económico e social, estava ali, assim, entregue praticamente a tudo o que, quem para ali fosse, quisesse fazer.
         Absorto nos meus pensamentos que, como pipocas, saltavam a uma velocidade incrível, tivera muitas vezes de parar a meio do caminho para me sentar onde desse, muitas vezes ao Sol, para escrevinhar qualquer gatafunho que me auxiliasse a lembrar mais tarde o que haveria de ser utilizado no livro.
         Passada cerca de uma hora, ou uma hora e meia, vindo lá dos lados do Jardim do Rio, vejo o Miguel com a sua viola as costas. Pouca fora a surpresa em o ver, pois, era mais do que natural encontrar sempre alguém conhecido quando se andava assim, ao Deus-dará, a passear por Almada, deambulante e ao sabor do vento e ainda por cima pelos caminhos do Vai-de-Roda (o Vai-de-Roda tinha sido um senhor que vivera em Almada antes de eu nascer, sendo assim chamado porque raramente passava pelas ruas principais, indo sempre de-roda, pelas ruas mais escondidas). Ora, aqueles caminhos do Vai-de-Roda eram ainda os favoritos de muitas pessoas (principalmente dos jovens, dos velhos e dos loucos) que fugiam à confusão da cidade para os locais mais belos e pitorescos daquela terra e que ficavam nas zonas mais escondidas... mas escondidas de quê? Dos conceitos e dos pré-conceitos instituídos pelo império capitalista, obviamente. Mas também escondidos dos olhares críticos de quem via a falta de motivação e até a preguiça nos que “nada-fazem-da-vida”.
         “- Então?” - comprimentou-me o Miguel. “- O que fazes por aqui? Já andei à tua procura: o pessoal do Jardim do Castelo disse-me que tinhas lá estado... ainda pensei que tinhas ido para o miradouro, ou andasses por Almada-Velha!...”
         “- Não fui, não! Passei pela biblioteca e depois vim até Cacilhas...”
         “- Queres ir até á tasca do Sr. Castelo?” - reconheci-lhe pelo tom de voz e pelos anos que já convivíamos que ele estava sem dinheiro, ou pelo menos com pouco e que queria deixar de deambular pelas ruas, entrar e parar em algum lugar: é uma das desvantagens quando não se é independente e ainda se vive em casa dos pais. Concordei e lá fomos, regressando parte do caminho do Ginjal que eu já tinha percorrido, pois a Barra Espanhola ficava bem perto do largo de Cacilhas.
         “- Pagas um jarro de tinto?” - revelou-se, então, objectivo e conctreto quanto à sua sugestão.
         “- Sim.” - respondi-lhe sem complicações, pois, era muito natural encontrar jovens sem dinheiro, que cravavam uns trocos e cigarros a uns e a outros. Também fazia o mesmo tantas vezes.
         “- O que é que estavas a fazer?”
         “- Estava a esboçar umas ideias para um livro.”
         “- Um livro?!” - perguntou-me algo admirado, como se não acreditasse muito bem que eu fosse escrever um livro, um livro inteiro e completo, terminado... “- Sobre o quê?!”
         “- Sobre Almada... sobre as pessoas que conheço...”
         “- Vê lá: não vais por o meu nome ai!” - pediu-me advertindo  em brincadeira, como se a exposição de sua vida através de um livro podesse revelar alguma coisa daquilo que, para todos os que caminhavam pelos caminhos do Vai-de-Roda, era evidente.
         “- Claro que não!” - descansei-o. “- Se falar de ti colocarei outro nome... mas muito possivelmente falarei, pois és das pessoas com que mais me dou...”
         “- Então e vais falar do quê, mais precisamente?”
         “- Bem... eu comecei com dois personagens a que chamei de Carocha e Lopes lá em cima, no Pragal, no Largo da Oliveira, onde fica o chafariz, os quais são, nada mais, nada menos, do que o (...) e o (...).”
         Ele riu-se com a gargalhada que só ele sabia dar, alta, divertida e forte.
         “- Muito bem! Com esses dois tens livro de certeza!”
         Continuei:
         “- Depois estou a pensar andar pelas ruas de Almada e descrever o que vejo: as ruas, as pessoas e falar aquilo que penso sobre tudo isso. Quer dizer, procuro fazer um livro sobre Almada contemporânea.”
         “- E que história é que isso vai ter?”
         “- Ainda não sei... talvez não tenha história nenhuma e seja só isso mesmo...” - confessei-lhe um pouco encolhido em relação à sua aceitação.
         “- Não sei até que ponto é que isso resultará como livro” - falou sincero.
         “- Eu também não... mas já viste bem isto tudo que nós estamos a viver e a ver? Penso que isto é um tempo único na história, não só da cidade, como do país e até do mundo... logo, tem de ficar registado... e espero que eu não seja o único a fazê-lo, porque uma coisa destas, do modo como está a acontecer em Almada, ficar descrita só por uma pessoa, não seria uma visão justa o suficiente para aqueles que procurassem saber o que era Almada neste tempo!” - despejei-lhe em justificação e já em alguma euforia.
         “- Sim... também penso que o que aqui vemos e vivemos é muito único... mas como é que vais descrever isto tudo? Por exemplo, como é que vais descrever a tasca do Sr. Castelo? Ou as ruas de Almada-Velha a um Sábado à noite? Ou a Casa da Juventude - Ponto de Encontro? Tens que arranjar uma história para isso tudo, senão vai ficar um bocado chato!”
         “- Sinceramente, ainda não sei.” - confessei-lhe.    
“- Possivelmente começo a despejar para o papel e logo vejo... desde que vá ficando tudo registado, é o que importa.”
         “- Mas tens que arranjar um fio à meada, senão, como é que vais encontrar-te no meio de tanta coisa? Chega a um certo ponto que te perdes...”
         “- Eu sei disso... só que já foram escritos tantos livros que abordam os sistemas sociais e económicos do povo (deste ou de outro país) sobre a forma de romance... o que eu queria fazer era algo diferente... um livro que tivesse personagens, mas que não fosse bem uma história, um romance... compreendes?”
         “- Compreendo, mas não imagino como é que vais fazer isso!”
         “- Nem tens que imaginar: quem tem de imaginar sou eu, senão, quando eu receber o Prémio Nobel, vais andar por ai a dizer que, quem deu a ideia para o livro, foste tu... e nunca mais te calas!” - disse-lhe eu enquanto me ria e lhe apoiava a mão nas costas, cedendo-lhe a entrada á minha frente para a tasca.
         Quando entrámos fomos recebidos por um “Boas, juventude!”, lançado pelo Sr. Castelo, um galego carismático, bonacheirão, simpático, já batido na casa dos sessenta, forte, de cabelo branco e bigode de neve, comprido e enrrolado para cima nas pontas.
         “- Boa-tarde, Sr. Castelo!” - saudámo-lo em harmonia sonora, com o gosto que fazia dar-lhe aquele cumprimento. Sentámo-nos ao balcão, trepando para cima de uns bancos altos que batiam na barriga quando estávamos em pé. Tínhamos sido os primeiros a chegar naquele dia. Naquele tasco, podia-se encontrar aquela juventude que, na sua grande maioria, não estudava, não trabalhava e que vivia em casa dos pais, sem visão de futuro, sem motivação de amanhã... trabalhavam quando as coisas não estavam tão boas em casa, quando os pais passavam por fases de menos paciência, ou quando procuravam construir, sem vontade, uma vida que não queriam... normalmente, para aquele tipo de juventude, o impulso que os levava a trabalhar, muito raramente, vinha de dentro si mesmos... e aqueles jovens eram às centenas só naquele concelho: uns, simplesmente, deambulavam pelas ruas e pelos locais habituais onde se podiam encontrar aquele tipo de juventude e alguns outros já não tão jovens... aqueles já não tão jovens, devido ao tipo de vida que haviam  escolhido levar em sua juventude - e principalmente devido ao consumo enorme de drogas farmacêuticas - haviam atingido a idade adulta com bloqueios mentais e espirituais que os impedia de encontrarem trabalho e construirem uma vida fora da protecção da casa dos pais, inseridos nos contextos do socialmente-aceite. Alguns dos jovens que por lá se viam eram até bandidos: roubavam carros, com os quais depois roubavam lojas, para com o dinheiro obtido, comprarem droga, beberem em qualquer lado que quisessem, sairem com raparigas, ou até mesmo para comprarem roupa cara e de marca (uma coisa que entre aquele tipo de bandidagem dada muita importância, era a marca de roupa que vestia, uma vez que maior parte deles vinham dos subúrbios da cidade, dos bairros-sociais, dos guetos de Almada, onde a vida dura era pobre e com pouco potêncial de compra - quando comparada com os "meninos-ricos", ou com os "betos" de Almada como eles chamavam aos jovens  de bem  que viviam na cidade).
         Servindo o jarro de vinho, brincou o Sr. Castelo como era costume, em sua boa disposição:
         “- Então, rapazes? Estão a descansar da semana de trabalho?” - meteu-se ele conosco apoiado no balcão, à nossa frente, acabando a frase a rir em alto som, para logo depois andar noutra direcção como se fosse fazer qualquer coisa, sem dar hipótese a qualquer resposta.
         Rimo-nos com ele e fomo-nos sentar numa mesa: eu sentei-me na cadeira que ficava de costas para a porta da rua, mas com as costas contra a parede, de frente para o balcão, com a entrada à minha direita e o Miguel à minha esquerda, de modo a que podesse ver quem entrava... ao frequentar aquele tipo de ambientes desde muito novo, coisa que eu tinha aprendido era nunca sentar-me de costas para a porta de entrada... o que se veio a tornar um hábito em qualquer sítio para onde fosse... por motivos de tranquilidade. O Miguel sentara-se de frente para a porta da rua, do outro lado da mesa.
         “- Já viste bem...” - continuei eu como se a conversa não tivesse sido interrompida – “... o que se está a passar com a juventude desta terra?”
         “- Claro que já vi! Então já não falámos disto tantas vezes?!” - admirou-se ele. “- Já para não falar da minha própria vida...”
         “- ... ou da minha. Olha lá, Miguel, porque é que, afinal, tu já estás com mais de trinta anos e ainda estás na estaca zero: sem trabalho, a viver em casa dos teus pais e sem prespectivas de construir uma vida tua, independente? É isso mesmo... a pergunta é mesmo essa: o que é que se passa que a juventude não está a conseguir lutar, nem sequer está a querer lutar pela sua independência?”
         “- Sinceramente... mas sinceramnte, olho para isto tudo e falta-me a motivação, a vontade para construir alguma coisa: isto é só merda! Um gajo vai trabalhar e é tudo a entalar-se uns aos outros e depois se um gajo quer construir uma vida, ter uma casa, uma mulher, filhos, um gajo está entalado... um gajo só se vai meter em dívidas e já sabes como é que é: metes-te a corda ao pescoço, só falta saltares do banco, ou o mais certo, só falta alguém chegar lá e empurrar o banco, tal e qual como fazem as seguradoras, a segurança-social, as finanças, os bancos... um gajo hoje em dia tem que ter carro! Eh, pá! Digam lá o que disserem, um gajo precisa de carro... se tiveres um filho e tiveres que o ir colocar na ama, ou na escola todos os dias de manhã, eu quero ver como é que vais fazer isso e ir trabalhar se não tiveres carro... eu conheço pessoas que tem filhos, que não tem carro e para se despacharem de manhã para irem trabalhar, têm de acordar bem cedo para primeiro arranjar os filhos e depois colocá-los na escola, ou na ama... só depois é que vão trabalhar. Chegam quase a dar em loucos! Eu conheço pessoal novo que está nesta situação e que estão a dar em malucos! Não dá! Um gajo tem de ter carro! Mas como é que é?! Um gajo tem carro e depois tem de sustentar a máquina: a gasolina (Ai! A gasolina!!!), o selo do carro, o seguro, a revisão, uma coisa aqui, outra acolà, juntando com o ordenado da casa, a água, a luz, o gás, a comida, a roupa, a mobília... Oh, meu Deus, meu Deus! Com os ordenados que existem neste país quem não se mete nisso sou eu. Num país em que o ordenado mínimo é mais baixo do que maior parte das rendas de casa, prefiro andar por aqui, fumar umas ganzas, beber um vinho, tocar uma viola, estar com o pessoal e nem sequer pensar nisso! Eu prefiro nem sequer pensar nisso!” - acabou ele já exaltado, já a falar mais alto, despejando ali toda a sua raiva e frustração como eu raramente via, enquanto, ao mesmo tempo, a afogava no copo de vinho. Entretanto, o Sr. Castelo estava a ouvir a conversa e meteu-se:
         “- Então, olha lá, ò Miguel: e quem é que te dá de comer? E quem é que te paga as roupas que tens vestidas? E a água com que tomas banho e o gás que a aquece?” - perguntou ele em tom sério, procurando a verdade que tão bem ele sabia sobre o Miguel e sobre tantos outros que por lá passavam e paravam.
         “- Sr. Castelo...” - respondeu-lhe ele – “... evidentemente que quem paga a água com que tomo banho, a comida que como e a electricidade que gasto em casa são os meus pais, mas de vez em quando eu trabalho e dou dinheiro em casa... compro roupa para mim e às vezes alguma coisa para a casa..."
         “- Ah, é?! E como é que tu achas que as coisas são mantidas? De certeza que lá em tua casa não são todos como tu, porque se fossem num instante o barco ia ao fundo! Para as coisas serem mantidas nós temos que trabalhar todos os dias e todos os dias ir á luta!” - atacou-o o Sr. Castelo, sem misericórdia.
         O Miguel calou-se por momentos, pensativo e sem resposta que justificasse a opção de vida que tomava ao despejar a sua sobrevivência e o seu bem-estar material nas costas de alguém lá de casa, que tinha de ir trabalhar todos os dias para que as coisas fossem mantidas. Sem mais saida e resposta, respondeu:
         “- O que isto está aprecisar é de uma revolução!!!”
         “- No meu ver, Miguel...” - continuou o Sr. Castelo – “... a revolução que tem de ser feita é na vossa cabeça... é no vosso coração! Como é que vocês pensam em mudar alguma coisa se não lutarem por ela, nem mudam a vocês próprios? Para a sociedade ser mudada nós temos que nos meter no meio dela e chafurdar lá dentro à procura das migalhas que caem perto de nós. Olhem lá para mim: eu tenho dois putos que estão na escola, o que não é nada barato. O que é que acontece se eu paro de trabalhar? Eu não consigo mudar nada neste mundo, nem nesta sociedade, mas eu não posso parar... primeiro porque não quero ficar dependente de ninguém: uma pessoa tem de aprender a desenvicilhar-se sozinha, tem de aprender a sobreviver sozinha, senão, que tipo de pessoa é que ela é?... e segundo eu não posso parar porque já tenho duas crianças á minha responsabilidade e elas não podem sofrer com as minhas escolhas...” - enquanto falava isto ele procurou ir buscar o amor que sentia pelos filhos e transmití-lo a nós, para que o entendessemos e não o levassemos a mal devido ao que ele dizia.
         “- Isto é um mundo cão! Um gajo lança-se ao mar e está entalado!” - o Miguel já não tinha mais conversa a não ser a crítica e mal-dissência. Eu procurei adiantar a conversa:
         “- Sabe o que é que eu penso, Sr. Castelo? Que o que é certo é que os jovens estão a tomar estas opções de vida e não estão a lutar por construir um vida enquanto é tempo e que o resultado disto é que daqui a dez anos vamos ver bandidos e vagabundos como nunca se viu...”
         “- Meu caro...” - falou o Miguel – “... estes políticos estão a arrebentar com tudo e existem muitos empresários e financeiros que estão a comer tudo! O povo cada vez mais vai estar entalado! Possivelmente estes jovens que agora não fazem nada, são aqueles que no futuro vão ser a frente de resistência de uma enorme revolução por não terem nada a perder. Lembras-te quando foi a manifestação na ponte 25-de-Abril contra as portagens? Maior parte do pessoal que andou ali a fazer frente à polícia, no meio da auto-estrada, a atirar calhaus aos gajos, a destruir as divisórias e a pegar fogo ao mato seco no meio da estrada, era a juventude que andava completamente passada da cabeça com esta merda toda e que não tinha nada a perder! Tu viste muito bem que ao redor da auto-estrada, em cima das colinas e da ponte do Pragal, estavam os velhos e todos aqueles que tem alguma coisa a perder por já terem colocado a corda à volta do pescoço com as compras a crédito e os empréstimos aos bancos, torcendo por que os que estavam lá em baixo, à porrada com a bófia, vingassem e conseguissem de vez acabar com aquela tanga que são as portagens que lhes comem, pelo menos, um décimo do ordenado quando eles, todos os dias, vão para Lisboa trabalhar. No fim deram um tiro no tal rapaz que ficou numa cadeira de rodas (ainda hoje sem ter recebido qualquer apoio do estado e já lá vão sei lá quantos anos, é preciso notar!), dispersaram à porrada o povo que assistia aquilo, que até mulheres grávidas que estavam nas paragens do autocarro levaram e acabou-se. Por medo, aqueles que tinham algo a perder, não apoiaram aquilo que os que não tinham nada a perder tinham começado e estavam a aguentar. Resultado: as portagens ainda lá estão e a aumentar todos os anos pelo menos uma vez! Os que têm a corda ao pescoço continuam a pagar portagem e os que não têm nada a perder, continuam sem ter nada a perder, sem casa, sem carro e sem família. Se alguém pode mudar alguma coisa nesta terra são os que se diz que nada fazem da vida! Vais ver: quando estalar ai uma revolução (que eu acredito que vai estalar!), quem vai lá estar na frente de resistência vamos ser nós, os que não-querem-fazer-nada-da-vida!”
Vista oriental do caminho do Cais do Ginjal com Lisboa na
margem norte do rio Tejo. Foto: António Vitorino
         O Miguel estava já estava um pouco nervoso, quase delirante, pois, aquela conversa estava a tocar-lhe no calcanhar-de-Aquiles.
         “- Mas sabes muito bem que não vais poder continuar assim...” - disse-lhe eu – “... porque o que te acontece é que vais acabar como um mendigo. Evidentemente, que a sociedade está a passar por uma fase nada fácil de sopurtar, mas temos que conquistar a nossa independência. Existem vários factores que te podem até levar à loucura quando te encontras numa condição dessas, de viveres em casa dos teus pais e dependente deles, não trabalhares: a mais difícil de todas é a frustração interior que sentes por estares a ir contra a lei da Natureza em que cada um tem de aprender a olhar por si e ser independente... outra coisa que pode trazer várias preturbações é a questão sexual: em casa dos teus pais não podes levar uma mulher para jantares com ela, falares e acabares por fazer amor... sem trabalhares, nem dinheiro tens para alugares um simples quarto de pensão... mesmo que seja ela quem alugue o quarto numa pensão qualquer, quando o sexo acaba, vais ter que lhe cravar um cigarro e mais uma vez a frustração e a tua realidade pressegue-te... não consegues constituir família assim... e eu sei muito bem que é uma coisa que tu queres muito: uma mulher e filhos!”
         “- Na condição em que o mundo está não sei se é isso que quero. Não sei se tenho coragem para colocar uma criança no mundo do modo como isto está!” - defendeu-se.
         “- Repara...” - continuei – “... que eu não te estou a atacar... se estou a atacar alguma coisa é a condição mundial que proporciona que pessoas que eu tão bem conheço desistam de lutar, de construir qualquer coisa em suas vidas e vivem a vida, todos os dias em frustração, em dor, em agonia, queimando o pouco, ou nada que tem, em cigarros e murtalhas, afogando as mágoas em copos de vinho que nem sequer pagam.”
         Pronto! Aquilo fora a gota de água que faltava para o copo transbordar! O Miguel endireitou-se na cadeira e olhou para mim de olhos muito abertos:
         “- Olha lá! Estás a mandar-me à cara o copo de vinho que tenho aqui à frente?!”
         O Sr. Castelo que tinha estado até então debruçado sobre o balcão para ficar mais perto de nossa conversa como espectador activo, endireitou-se também, olhando o Miguel, analisando em crítica negativa a postura que o outro estava a tomar.
         “- Não é nada disso!” - procurei eu acalmá-lo – “- Quantas vezes bebo eu copos de vinho que me são pagos por ti, ou por outros? Repara que se tu estás nessa situação e a tomar essa decisão para com a tua vida, juntos contigo, estão mais umas centenas de jovens só aqui em Almada e milhares por todo o país e milhões por todo o mundo. Eu não te estou a atacar a ti pessoalmente: estou a tentar compreender o que pensa uma pessoa assim, no meu ver, vítima do império capitalista, consumista e materialista que conquistou todo o território nacional e praticamente todo o mundo, chamado, civilizado.”
         “- Mas eu...” - o tom de sua voz já me mostrava que ele não estava a conseguir sopurtar o tema da conversa... que era doloroso demais para a sua capacidade de aceitação sobre a sua própria vida – “... já estive muitas vezes a trabalhar e entalaram-me sempre!”
         Eu sabia muito bem que aquilo era uma desculpa que ele inventara para se justificar da sua condição. Ele até tinha histórias detalhadas (com promenores verídicos à mistura, não duvido) de como é que o tinham presseguido e prejudicado nos trabalhos em que estivera. Está bem que nos locais de trabalho existem sempre pessoas que, por uma, ou por outra razão, estão sempre à procura de prejudicar os outros, mas no seu caso era tudo uma auto-justificação, inventada para si mesmo e para os outros, afim de poder acordar todos os dias e, minimamente, encarar o dia de cabeça erguida.
         Entretanto chegou o puto Gaspar, que já não era puto nenhum, mas como o conhecíamos há tanto tempo, o nome mantinha-se.
         “- Então, pessoal!” - comprimentou-nos ele como que quase acabado de acordar – “- Alguém tem murtalhas?” - perguntou de voz trémula.
         Aquilo foi como que a salvação do Miguel: o vinho já o desinibira o suficiente para conseguir confrontar a conversa que estávamos a ter... mas só a simples prespéctiva de fumar daquela ganza vinha deixá-lo já mais cômodo, confiante consigo mesmo e com os outros, pois, já sabia que ia ficar com a pedra. Ainda por cima ele era o único que tinha murtalhas, o que queria dizer que a ganza iria ser rodada para si, com toda a certeza.
         “- Eu tenho lençóis!” – se metade da força e da convicção com que disse aquilo e se ergueu da cadeira para tirar a carteira onde as murtalhas estavam guardadas fosse projectada e mantida na construção de uma vida material, seria mais do que suficiente para realizar coisas muito belas e vivificantes para consigo e para com a sociedade em geral. Mas aquilo era uma força momentânea, interesseira, projectada num objectivo mesquinho.
         Eu, como estava deveras obstinado em dar vida a Almada dos Meus Olhos, virei-me para o puto Gaspar e perguntei-lhe, com intensidade moderada:
         “- Olha, Gaspar, estás a trabalhar?”
         Ele, que estava em pé, apoiado nas costas da cadeira da mesa ao lado da nossa e virado para mim, bem perto, simplesmente, sacudio a cabeça. O Sr. Castelo, por sua vez, parou de limpar um dos imensos copos que tinha para limpar, acabadinhos de tirar da máquina-de-lavar e olhou-me de soslaio, interrogativo, com a expressão de "mas-o-que-é-que-tu-estás-à-procura?"...
         “- E há quanto tempo é que não estás a trabalhar?” - Interroguei-o sem mesiricórdia.
         “- Sei lá! Há um ano, talvez.” - respondeu sem quase sem emoção, enquanto queimava o haxixe na ponta de um canivete com uma lâmina de sete dedos de comprimento. O Gaspar tinha um visual punk desde que o conhecera há mais de quinze anos... e ele já estava com vinte e cinco anos de idade. Morava no bairro do Monte da Caparica, mais conhecido como o Bairro Amarelo. Pessoa pacífica, calma, que de vez em quando vendia haxixe para ter uns trocos para o tabaco, para a sua bebida, para o transporte público, para sair com a namorada e ir até um cinema, à praia, para a noite de Lisboa, ou a algum concerto. Vivia sozinho com a mãe, pois, segundo ele, o pai tinha falecido quando ele ainda era pequeno. A sua vida familiar não era fácil: a mãe trabalhava duro numa fábrica qualquer e como só ganhava um ordenado mínimo e o filho não trabalhava, tinham que viver os dois naquele gueto, longe da qualidade de vida a que ela estivera habituada durante toda a sua vida de casada. Portuguesa e de pele clara... os sonhos de menina estagnados, apodrecendo, numa qualquer linha-de-montagem... no meio daquele bairro e em sua humildade. Ela já se dava por contente que o filho não andasse metido na heroína, nem na cocaína, nem com os gangs organizados do bairro. O filho tinha uma namorada (bonita e simpática, por sinal e que a tratava com todo o respeito e que até se prestava em ajudar em alguma coisa quando ia lá a casa) e até comprava, ás vezes, com o dinheiro ganho no seu pequeno tráfico, uma flôr para lhe oferecer. E nunca deixava de lhe comprar prendas no dia do seu aniversário, no dia da mãe, no Natal...
         “- Então e porque é que não trabalhas?” - ele também era uma pessoa humilde... se fosse outro não tinha levado tão bem a minha brusca intromissão em sua vida particular, mas como nos conhecíamos há alguns anos, a pergunta foi facilmente aceite.
         “- Sei lá! Não gosto! Não preciso! Trabalhar para quê?”
         “- Mas já trabalhás-te, não já?”
         “- Claro!”
         “- E porque é que parás-te?”
         “- Porque o patrão era um estúpido!” - para si, uma justificação mais do que suficiente.
         “- Olha lá, Gaspar e o que é que tu pensas fazer da tua vida?”
         Aquela pergunta, que ele só costumava ouvir muito raramente da sua mãe, ou de alguma pessoa mais velha e com postura de responsável, fê-lo erguer a cabeça e controlar o ambiente em que estava e do qual ele ainda não se havia apercebido muito bem, devido aos resíduos de moca da noite anterior que ainda pairavam em sua mente meio adormecida. Olhou para mim algo surpreso, olhou o Miguel e o Sr. Castelo, todos esperando uma resposta... e apercebendo-se que aquela pergunta já tinha qualquer coisa por trás e que tinha começado antes dele chegar, perguntou-me:
         “- Então e por é que queres saber?”
Entretanto chegou a Liliana, a namorada do puto Gaspar, pois, eles tinham combinado encontrarem-se ali áquela hora, depois do almoço. Esperei que ela chegasse até ele, que se beijassem com o amor que lhes era próprio e respondi-lhe:
         “- Bem... tudo começou porque estou a começar a escrever um livro..”
         “- ... a escrever um liiivro?!...” - gritou o Sr. Cstelo em tom de zombaria lá de trás do balcão.
         “- ... e...” - continuei – “... começámos por falar do porquê de maior parte do pessoal que nós conhecemos não lutar para construir a sua vida, não estar integrados na sociedade, trabalhando, pagando as suas contas, os seus impostos e sendo independente. Começou assim e tu foste um bocado apanhado no meio da conversa.”
         Ele passou a língua na murtalha e colou-a, dando uma forma cónica perfeita ao charro.
         “- Então,diz lá: se não trabalhas e se ainda vives em casa da tua mãe com a idade que tens, o que é que pensas fazer da vida?” - tive eu que lhe perguntar outra vez, mas agora a coisa soara de outra maneira, pois, a namorada estava presente e eu não sabia se eles já tinham falado em futuro, se não, mas o que é certo é que o campo de intensão que saia de si tinha-se transformado e ele estava com uma postura mais madura, mais prudente, notoriamente influenciado pela presença da Liliana naquela conversa. Nem por isso me pareceu deixar de ser sincero:
         “- Eh, pá! Sei lá eu! Talvez trabalhar e constituir família...”
         “- Então, mas ainda aqui estás!?”
         “- Sinceramente, não me apetece nada ir trabalhar. O que eu gostava era de fabricar e vender artezanato.”
         “- Mas isso é trabalhar, meu rapaz!”
         “- Sim... mas é diferente!”
         “- Diferente como?!”
         “- Aì eu trabalhava só para mim e escusava de estar a levar com a estupidez dos outros!” - confessou ele. Esta resposta veio tirar o Miguel do seu canto silencioso, onde esperava que a conversa não voltasse para o seu lado e que a ganza fosse acabada de fazer e rodada para si:
         “- Estás a vêr? Estás a vêr? É assim! Este mundo é uma merda e um gajo tem de andar a levar com a ignorância dos outros para ganhar dinheiro... gajos que exploram um homem até não poderem mais e ainda pisam e cospem em cima de ti.”
         O Sr. Castelo estava calado e ao mesmo tempo que ouvia, estava como que apartado da conversa, pois, em questões de posição patronal, ele também tinha fama de ser explorador e mau-pagador.
         “- Pois é!” - continuou o puto Gaspar - “Basta um gajo sentir-se com mais um bocadinho de poder e começa logo a tratar os outros como se fossem cães. Isso é uma das coisas que me levam a não trabalhar: não tenho que estar a levar com esses gajos!”
         Aquela era uma das coisas que faziam com que Portugal estivesse a caminhar de forma descendente no que diz respeito à economia e ao poder de compra da população: a falta de valorizção da mão-de-obra, fosse ela qual fosse e fizesse ela o que fizesse, resultando dai que as coisas que o indivíduo trabalhador fazia, não as fazia tão bem, já que independentemente de as fazer bem, muito bem, ou menos bem, o seu trabalho dificilmente era reconhecido em forma de palavras, ou de aumento salarial. Numa sociedade mais perfeita, a mão-de-obra valorizada - quer fosse com recompensa monetária, quer fosse com a oportunidade do melhoramento da condição socio-económica do indivíduo trabalhador - faria com que a produção aumentasse, a economia subisse e que o povo andesse mais feliz... e se o povo andasse mais feliz, a economia sobiria e a produção aumentaria. Seria um ciclo positivamente vicioso.
         Independentemente de eu concordar com o Miguel e com o Gaspar em alguns pontos, não deixei de os confrontar pessoalmente, muito para além daquilo que eles utilizavam como justificação para estarem na condição em que estavam:
         “- Mas se vocês não trabalharem e não se fizerem à vida, vocês acabam como mendigos... acabam como sendo o resto da sociedade... agora já nós não nos sentimos bem em muitos sítios devido à nossa falta de dinheiro, ou à devido à nossa condição social, ou até mesmo devido ao nosso método de ganhar dinheiro. Se continuarmos assim, tornamo-nos naquilo que já somos, mas, então, de um modo irreversível: parasitas da sociedade! Seremos uns frustrados na vida, nenhuma mulher nos quererá e nenhuma criança nos tomará como bom exemplo a seguir. Quanto muito seremos os exemplos daquilo que não se deve escolher fazer da vida!”
         Evidentemente, o silêncio instalou-se e a mágoa ficou no ar... a mágoa deles para comigo por eu ter sido o portador das palavras que falaram a verdade sobre as suas vidas... deles para com eles porque o que falara era verdade e eles sabiam-no muito bem... deles para com o mundo porque, afinal, era por o mundo estar como estava e as pessoas fazerem do mundo aquilo que ele era naquele tempo, que eles estavam a escolher todos os dias, ao acordarem, viverem a vida como estavam a escolher viver...