terça-feira, 14 de agosto de 2012


INTRODUÇÃO

Deste modo se apresentava Almada na internet, num site da Câmara Municipal de Almada, no endereço www.m-almada.pt:
         "Almada é, pela sua História, pela sua localização e pelas suas características naturais, um local privilegiado onde há muito para oferecer. A sua proximidade a Lisboa e as belíssimas paisagens na ligação terra - rio - mar dão-lhe características únicas.
         "A grande extensão de areia fina e águas temperadas trazem a Almada milhões de pessoas no Verão, que para além da beleza natural das praias, procuram a riqueza ambiental da Arriba Fóssil da Costa de Caparica e das matas envolventes.
         "As ruas de Almada Velha e o Cais do Ginjal são lugares onde os elementos naturais e construídos estão interligados, com o rio presente e perto, constituindo um espaço onde ninguém consegue ficar alheio a esta Velha - nova realidade.
         "Equipamentos culturais e desportivos de topo, como o Fórum Romeu Correia, a Casa da Cerca, o Solar dos Zagallos, o Teatro Municipal ou o Complexo Municipal dos Desportos Cidade de Almada, entre outros, comprovam a intensa vida cultural e desportiva de Almada, onde a tradição centenária do associativismo se espelha na actividade das mais de duas centenas de colectividades e associações do Concelho."



... existe, porém, algo que não é referido...









CAPÍTULO 1

Estávamos os três sentados nos bancos-de-jardim, de maçarocas na mão, no Largo da Oliveira, onde se situava o chafariz do Pragal. Eu tinha um banco só para mim. O Carocha e o Lopes estavam os dois sentados no banco à minha direita a falarem, enquanto eu acabava de comer o milho: tínhamos vindo ajudar o Carocha a transportar água até à sua casa... é que ele morava numa casa que ele próprio construíra com pedaços de pau, de madeira, de chapa e pedra e não tinha água canalizada, nem electricidade; por isso, todos os dias tinha de ir buscar água ao chafariz do Pragal.
Era noite. Silenciosa madrugada. A conversa entre eles os dois estava animada: falavam em desenhar aquele velho sítio segundo a perspéctiva em que estavam sentados, até que se lembraram de outros locais do concelho de Almada que também gostariam de desenhar... mas tinham de ser sítios antigos... que possuíssem e neles se sentisse história!
Passado algum tempo, saímos dali e lá fomos os três: eu, ele e o Lopes.
Caminhámos sob o manto sufocante da noite que saía da terra depois de um dia de imenso calor, carregando garrafões de vida! Subimos a larga estrada, já pingando suor devido á força que faziamos enquanto andávamos com o peso dos recipientes que nos esticavam os braços. Mais acima, a estrada começava a estreitar no lado direito por um sécular muro que a erosão nos revelava ter sido feito com pedaços de fósseis da Arriba Fóssil desta margem do rio Tejo. À nossa esquerda, uma barreira de canas. Depois, inesperadamente, a visão abria-se e libertava o nosso olhar para uma rotunda enfeitada com uns jorros de água, deixando a nossa visão voar pelo espaço de um enorme terreno que por trás dela se estendia e no qual se situava a imponente imagem do Cristo-Rei. Aquele terreno alongava-se até um precipício que caìa para o rio Tejo dezenas de vertiginosos metros abaixo, ampliando-se através dos terrenos do Seminário, em vários hectares de Natureza verde e, praticamente, imaculada... tudo aquilo pertença da Igreja Católica. No lado direito acompanhava-nos o muro do campo de futebol do Almada Atlético Clube.
Estávamos no topo da cidade, no ponto mais elevado de Almada.
Naquela noite o Carocha ainda teve ajuda e levámos cerca de quarenta litros de água. Mas nas outras vezes tinha de ser ele sozinho a fazê-lo. Não quando algum de nós e outros aparecíamos... mas maior parte das vezes era ele sozinho que carregava com os garrafões... com os seus cães... com a sua casa... com o seu pequeno espaço de terra... com a sua pobreza.
Ele vivia numa das últimas centenas de casas clandestinas que existiam na freguesia de Almada, mas estava tão bem escondida que poucos sabiam da sua existência e para nós era como que um refúgio à confusão da cidade. Era quase como se voltássemos ao campo: hortas de couves, batata e algum milho; figueiras que tinham crescido sem impedimento, ou podagem... e na Primavera e no Verão muito mato que se quedava pela descida pouco íngreme daquele emaranhado de quintinhas. Era quase como se voltássemos ao campo. Quase. Nós pertencíamos ás últimas gerações que haviam conhecido o lado campestre do concelho, antes da transformação material, social, cultural e a tantos outros níveis que, nos últimos anos vinha a acontecer em Almada, a uma velocidade, cada vez mais, vertiginosa. Maior parte de nossos pais tinha vindo do interior de Portugal para procurarem na região de Lisboa a sorte e através deles viajávamos muitas vezes até ao lado rural do país, para visitar os avós... e coisa que aquilo não era, era campo! Era, sim, um espaço de terra que ainda não tinha sido vendido pelos donos a algum financeiro que o tapasse com cimento e alcatrão em algum rentável projecto imobiliário e que ainda era aproveitado por alguns que o cultivavam... todos eles, velhos agricultores.
Sentíamos saudade daquele contacto com a terra que nos lembrávamos de sentir quando éramos crianças, em nós e no povo almadense em geral... contacto tal que nos estava a ser roubado pelo império capitalista, consumista e materialista que conquistava todo o planeta. Ânsias de ter e de poder tinham invadido a cidade. Por isso, o humilde espaço do Carocha, ainda com a terra de cultivo a oferecer-se à semente, era, para nós, uma fuga à cidade e uma oportunidade de nos encontrarmos conosco próprios.
Às vezes a casa do Carocha ficava cheia de gente animada que falava, ria, jogava às cartas, fumava haxixe e tabaco; que bebia vinho tinto e Aldeia Velha esverdeada pelas folhas de canábis que o Carocha colocava lá para dentro a fermentar durante alguns meses. Gente que falava sobre temas complexos, sobre os quais eu ouvia outros a falarem, mas que naquele espaço os ouvia de um modo - senão tanto, ou mais inteligente - pelo menos mais honesto e sóbrio, o que destoava, completamente, daquele ambiente de consumo de venenos.
Em algumas noites de Verão - ou sempre que as outras estações do ano deixassem - sentávamo-nos á volta de uma fogueira que o Carocha ateava no terreno, cada um sentado naquilo que encontrava por ali (cadeiras, caixas de madeira, gavetas de antigos móveis, tijolos, tudo coisas que aquele ermita urbano encontrava pela cidade); tocávamos violas, cantávamos hinos á liberdade inventados no momento, ou rebuscados na memória lusa; batucávamos em algum jambé trazido por alguém, ou nos objectos por ali espalhados, ou até mesmo nas pernas; os charros iam rodando, tal e qual um cachimbo da paz que selava a união entre todos, pelo menos, momentaneamente. Mas era assim quando o Carocha tinha companhia, porque, maior parte dos dias e das noites tinha de ser só ele, com os seus cães, o seu rádio e a sua vida.
Naquela noite, quando eu e o Lopes deixámos o Carocha já passava das três da madrugada.
Descemos à cidade para dormir.

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