CAPÍTULO 7
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Vista ocidental do caminho do Cais do Ginjal
com a ponte 25 de Abril sobre o rio Tejo.
Foto: António Vitorino |
Saindo
do largo de Cacilhas na direcção do Tejo, virei a esquina, à esquerda, para
ocidente, entrando no Cais do Ginjal. Em dias de vento, virar daquela esquina
era receber o vento dominador que vinha do mar e nos empurrava o peito,
instintivamente colocado para a frente, quase obrigando-nos dar um passo para
trás. Não naquele dia: o Sol tórrido que me castigava e a quase inexistente
brisa, faziam com que pesasse mais nas minhas costas a mochila cheia de
apetrechos que me ajudavam a esclarecer de um modo mais objectivo aquilo que eu
era: um caderno onde estava a apontar os primeiros ensaios daquilo que viria a
ser "Almada dos Meus Olhos"... algumas canetas para não ser apanhado desprevenido...
"A Embrieguês da Metamorfose" de Stefan
Zweig, pelo qual me apaixonei, pois, como não conhecia o autor, fui
apanhado de surpresa pela beleza de sua escrita e pelo enrredo daquela história...
um bloco de desenho no qual esboçava algumas ideias... lápis... as chaves de
casa... um canivete suíço... o bilhete de identidade guardado num bolso... e algum
dinheiro...
Aquela
esquina era feita por um conceituado restaurante que se apresentava como
especialista em frutos do mar: peixes e mariscos frescos - tal e qual como
acontecia em relação aos manjares ofertados pelos outros restaurantes de
Cacilhas - pescados ao largo da Costa da Caparica, de Sesimbra, ou de Setúbal. Alguns
daqueles peixes haviam sido pescados por pequenos pescadores que atracavam o
barco nos pontões da Transtejo, para
depois se fazerem ao mar azul que à minha frente se estendia lá ao fundo, no
horizonte de espelho, por baixo da ponte 25
de Abril. Conforme caminhava, a degradação dos edifícios ia aumentando,
assim como a quantidade de tag's e os
truwap's que os mais jovens haviam
aproveitado para pintar nas paredes. Das paredes emanava uma salada ambiental
em estilo fluvial e underground. Aquele
convite à arte underground era feito
pelo fraco laranja-mistério da iluminação de novoeiro, que se estendia pelo
caminho quando noturno, mas que agora se destacava em tons castanho-cinza e
laranja-cinza de muros antigos, misturados com algum verde escuro nascido de
filtrações de água. A antiga fábrica de gelo, um antigo armazém de bebidas com
a marca Martini já quase totalmente
apagada pelo tempo, a antiga fábrica do óleo-de-fígado-de-bacalhau, antigos
armazéns de peixe (alguns raros ainda a funcionarem), todos cinzento-fantasma,
contando histórias de quando aquele lugar era rico em movimento, rico em trabalho
haviam muitos anos, ainda antes de alguém me conhecer como gente. O Cais do
Ginjal era um nome velho e ao mesmo tempo gostoso de ouvir pela sonoridade com
que se insinuava na boca.
À minha direita, o
rio - um metro abaixo do nível dos meus pés de sandálias - lançava-se suave
contra o paredão de cimento armado e verde de velhice, de limos e pequenas
algas.
No
primeiro troço do Ginjal andei umas duas centenas de metros até dobrar para o
segundo troço do caminho (também com, mais, ou menos, o mesmo comprimento)
continuando ladeado à esquerda por, essencialmente, velhíssimas casas de
habitação tão degradadas que revelavam através dos buracos que, em tempos idos,
as paredes das casas eram feitas com pedragulhos fósseis marítimos de lama
petrificada, por ali encontrados. Aqueles pedregulhos haviam sido apanhadas
pelos antigos construtores nas margens do rio, depois de, naturalmente, terem
caído (ou propositadamente extraídos) da Arriba Fóssil que se lançava, em
certos pontos, a mais de cinquenta metros para o céu, ali mesmo á minha
esquerda. Erguia-se por trás das construções humanas, embelezada pelo verde da
vegetação e pelo amarelo-torrado de suas paredes em contraste com o céu azul de
Verão. Aquela Arriba-Fóssil estendia-se desde Cacilhas até à foz do Tejo,
continuando para sul durante dezenas de quilómetros, começando na freguesia de
Cacilhas, no concelho de Almada e cruzando outra freguesias e outros concelhos,
sempre elevando-se a alturas de dezenas de metros.
Algumas daquelas
casas do Cais do Ginjal ainda eram habitadas, muito possivelmente, pelos seus últimos
inclinos... um armazém era aproveitado pelo grupo de teatro O Olho... havia uma pequena oficina lá mais à frente... mas todas
as casas reflectiam abandono, degradação, conflitos de interesses económicos de
bastidores. Uma zona com um potêncial tão grande para a elaboração de um
enorme, belo e eficaz projecto cultural, económico e social, estava ali, assim,
entregue praticamente a tudo o que, quem para ali fosse, quisesse fazer.
Absorto
nos meus pensamentos que, como pipocas, saltavam a uma velocidade incrível,
tivera muitas vezes de parar a meio do caminho para me sentar onde desse,
muitas vezes ao Sol, para escrevinhar qualquer gatafunho que me auxiliasse a
lembrar mais tarde o que haveria de ser utilizado no livro.
Passada
cerca de uma hora, ou uma hora e meia, vindo lá dos lados do Jardim do Rio, vejo o Miguel com a sua
viola as costas. Pouca fora a surpresa em o ver, pois, era mais do que natural
encontrar sempre alguém conhecido quando se andava assim, ao Deus-dará, a
passear por Almada, deambulante e ao sabor do vento e ainda por cima pelos
caminhos do Vai-de-Roda (o Vai-de-Roda tinha sido um senhor que
vivera em Almada antes de eu nascer, sendo assim chamado porque raramente
passava pelas ruas principais, indo sempre de-roda, pelas ruas mais escondidas). Ora,
aqueles caminhos do Vai-de-Roda eram
ainda os favoritos de muitas pessoas (principalmente dos jovens, dos velhos e
dos loucos) que fugiam à confusão da cidade para os locais mais belos e
pitorescos daquela terra e que ficavam nas zonas mais escondidas... mas
escondidas de quê? Dos conceitos e dos pré-conceitos instituídos pelo império
capitalista, obviamente. Mas também escondidos dos olhares críticos de quem via
a falta de motivação e até a preguiça nos que “nada-fazem-da-vida”.
“-
Então?” - comprimentou-me o Miguel. “- O que fazes por aqui? Já andei à tua
procura: o pessoal do Jardim do Castelo disse-me que tinhas lá estado... ainda
pensei que tinhas ido para o miradouro, ou andasses por Almada-Velha!...”
“-
Não fui, não! Passei pela biblioteca e depois vim até Cacilhas...”
“-
Queres ir até á tasca do Sr. Castelo?” - reconheci-lhe pelo tom de voz e pelos
anos que já convivíamos que ele estava sem dinheiro, ou pelo menos com pouco e
que queria deixar de deambular pelas ruas, entrar e parar em algum lugar: é uma
das desvantagens quando não se é independente e ainda se vive em casa dos pais.
Concordei e lá fomos, regressando parte do caminho do Ginjal que eu já tinha percorrido,
pois a Barra Espanhola ficava bem
perto do largo de Cacilhas.
“-
Pagas um jarro de tinto?” - revelou-se, então, objectivo e conctreto quanto à
sua sugestão.
“- Sim.” - respondi-lhe sem complicações,
pois, era muito natural encontrar jovens sem dinheiro, que cravavam uns trocos
e cigarros a uns e a outros. Também fazia o mesmo tantas vezes.
“-
O que é que estavas a fazer?”
“-
Estava a esboçar umas ideias para um livro.”
“-
Um livro?!” - perguntou-me algo admirado, como se não acreditasse muito bem que
eu fosse escrever um livro, um livro inteiro e completo, terminado... “- Sobre
o quê?!”
“-
Sobre Almada... sobre as pessoas que conheço...”
“-
Vê lá: não vais por o meu nome ai!” - pediu-me advertindo em brincadeira, como se a exposição de sua
vida através de um livro podesse revelar alguma coisa daquilo que, para todos
os que caminhavam pelos caminhos do Vai-de-Roda, era evidente.
“-
Claro que não!” - descansei-o. “- Se falar de ti colocarei outro nome... mas
muito possivelmente falarei, pois és das pessoas com que mais me dou...”
“-
Então e vais falar do quê, mais precisamente?”
“-
Bem... eu comecei com dois personagens a que chamei de Carocha e Lopes lá em
cima, no Pragal, no Largo da Oliveira, onde fica o chafariz, os quais são, nada
mais, nada menos, do que o (...) e o (...).”
Ele
riu-se com a gargalhada que só ele sabia dar, alta, divertida e forte.
“-
Muito bem! Com esses dois tens livro de certeza!”
Continuei:
“-
Depois estou a pensar andar pelas ruas de Almada e descrever o que vejo: as
ruas, as pessoas e falar aquilo que penso sobre tudo isso. Quer dizer, procuro
fazer um livro sobre Almada contemporânea.”
“-
E que história é que isso vai ter?”
“-
Ainda não sei... talvez não tenha história nenhuma e seja só isso mesmo...” - confessei-lhe
um pouco encolhido em relação à sua aceitação.
“-
Não sei até que ponto é que isso resultará como livro” - falou sincero.
“-
Eu também não... mas já viste bem isto tudo que nós estamos a viver e a ver?
Penso que isto é um tempo único na história, não só da cidade, como do país e até
do mundo... logo, tem de ficar registado... e espero que eu não seja o único a
fazê-lo, porque uma coisa destas, do modo como está a acontecer em Almada,
ficar descrita só por uma pessoa, não seria uma visão justa o suficiente para
aqueles que procurassem saber o que era Almada neste tempo!” - despejei-lhe em
justificação e já em alguma euforia.
“-
Sim... também penso que o que aqui vemos e vivemos é muito único... mas como é
que vais descrever isto tudo? Por exemplo, como é que vais descrever a tasca do
Sr. Castelo? Ou as ruas de Almada-Velha a um Sábado à noite? Ou a Casa da Juventude - Ponto de Encontro? Tens que arranjar uma história para
isso tudo, senão vai ficar um bocado chato!”
“-
Sinceramente, ainda não sei.” - confessei-lhe.
“- Possivelmente começo a despejar para
o papel e logo vejo... desde que vá ficando tudo registado, é o que importa.”
“-
Mas tens que arranjar um fio à meada, senão, como é que vais encontrar-te no
meio de tanta coisa? Chega a um certo ponto que te perdes...”
“-
Eu sei disso... só que já foram escritos tantos livros que abordam os sistemas
sociais e económicos do povo (deste ou de outro país) sobre a forma de
romance... o que eu queria fazer era algo diferente... um livro que tivesse
personagens, mas que não fosse bem uma história, um romance... compreendes?”
“-
Compreendo, mas não imagino como é que vais fazer isso!”
“-
Nem tens que imaginar: quem tem de imaginar sou eu, senão, quando eu receber o Prémio Nobel, vais andar por ai a dizer
que, quem deu a ideia para o livro, foste tu... e nunca mais te calas!” -
disse-lhe eu enquanto me ria e lhe apoiava a mão nas costas, cedendo-lhe a
entrada á minha frente para a tasca.
Quando
entrámos fomos recebidos por um “Boas, juventude!”, lançado pelo Sr. Castelo,
um galego carismático, bonacheirão, simpático, já batido na casa dos sessenta,
forte, de cabelo branco e bigode de neve, comprido e enrrolado para cima nas
pontas.
“-
Boa-tarde, Sr. Castelo!” - saudámo-lo em harmonia sonora, com o gosto que fazia
dar-lhe aquele cumprimento. Sentámo-nos ao balcão, trepando para cima de uns
bancos altos que batiam na barriga quando estávamos em pé. Tínhamos sido os
primeiros a chegar naquele dia. Naquele tasco,
podia-se encontrar aquela juventude que, na sua grande maioria, não estudava,
não trabalhava e que vivia em casa dos pais, sem visão de futuro, sem motivação
de amanhã... trabalhavam quando as coisas não estavam tão boas em casa, quando
os pais passavam por fases de menos paciência, ou quando procuravam construir,
sem vontade, uma vida que não queriam... normalmente, para aquele tipo de
juventude, o impulso que os levava a trabalhar, muito raramente, vinha de
dentro si mesmos... e aqueles jovens eram às centenas só naquele concelho: uns,
simplesmente, deambulavam pelas ruas e pelos locais habituais onde se podiam
encontrar aquele tipo de juventude e alguns outros já não tão jovens... aqueles
já não tão jovens, devido ao tipo de vida que haviam escolhido levar em sua juventude - e
principalmente devido ao consumo enorme de drogas farmacêuticas - haviam atingido
a idade adulta com bloqueios mentais e espirituais que os impedia de
encontrarem trabalho e construirem uma vida fora da protecção da casa dos pais,
inseridos nos contextos do socialmente-aceite.
Alguns dos jovens que por lá se viam eram até bandidos: roubavam carros, com os
quais depois roubavam lojas, para com o dinheiro obtido, comprarem droga,
beberem em qualquer lado que quisessem, sairem com raparigas, ou até mesmo para
comprarem roupa cara e de marca (uma coisa que entre aquele tipo de bandidagem
dada muita importância, era a marca de roupa que vestia, uma vez que maior
parte deles vinham dos subúrbios da cidade, dos bairros-sociais, dos guetos de Almada, onde a vida dura era
pobre e com pouco potêncial de compra - quando comparada com os
"meninos-ricos", ou com os "betos" de Almada como eles chamavam
aos jovens de bem que viviam na cidade).
Servindo
o jarro de vinho, brincou o Sr. Castelo como era costume, em sua boa disposição:
“-
Então, rapazes? Estão a descansar da semana de trabalho?” - meteu-se ele conosco
apoiado no balcão, à nossa frente, acabando a frase a rir em alto som, para logo
depois andar noutra direcção como se fosse fazer qualquer coisa, sem dar hipótese
a qualquer resposta.
Rimo-nos
com ele e fomo-nos sentar numa mesa: eu sentei-me na cadeira que ficava de
costas para a porta da rua, mas com as costas contra a parede, de frente para o
balcão, com a entrada à minha direita e o Miguel à minha esquerda, de modo a
que podesse ver quem entrava... ao frequentar aquele tipo de ambientes desde
muito novo, coisa que eu tinha aprendido era nunca sentar-me de costas para a
porta de entrada... o que se veio a tornar um hábito em qualquer sítio para
onde fosse... por motivos de tranquilidade. O Miguel sentara-se de frente para
a porta da rua, do outro lado da mesa.
“-
Já viste bem...” - continuei eu como se a conversa não tivesse sido
interrompida – “... o que se está a passar com a juventude desta terra?”
“-
Claro que já vi! Então já não falámos disto tantas vezes?!” - admirou-se ele.
“- Já para não falar da minha própria vida...”
“-
... ou da minha. Olha lá, Miguel, porque é que, afinal, tu já estás com mais de
trinta anos e ainda estás na estaca zero: sem trabalho, a viver em casa dos
teus pais e sem prespectivas de construir uma vida tua, independente? É isso
mesmo... a pergunta é mesmo essa: o que é que se passa que a juventude não está
a conseguir lutar, nem sequer está a querer lutar pela sua independência?”
“-
Sinceramente... mas sinceramnte, olho para isto tudo e falta-me a motivação, a
vontade para construir alguma coisa: isto é só merda! Um gajo vai trabalhar e é
tudo a entalar-se uns aos outros e depois se um gajo quer construir uma vida,
ter uma casa, uma mulher, filhos, um gajo está entalado... um gajo só se vai
meter em dívidas e já sabes como é que é: metes-te a corda ao pescoço, só falta
saltares do banco, ou o mais certo, só falta alguém chegar lá e empurrar o
banco, tal e qual como fazem as seguradoras, a segurança-social, as finanças,
os bancos... um gajo hoje em dia tem que ter carro! Eh, pá! Digam lá o que
disserem, um gajo precisa de carro... se tiveres um filho e tiveres que o ir
colocar na ama, ou na escola todos os dias de manhã, eu quero ver como é que
vais fazer isso e ir trabalhar se não tiveres carro... eu conheço pessoas que
tem filhos, que não tem carro e para se despacharem de manhã para irem
trabalhar, têm de acordar bem cedo para primeiro arranjar os filhos e depois
colocá-los na escola, ou na ama... só depois é que vão trabalhar. Chegam quase
a dar em loucos! Eu conheço pessoal novo que está nesta situação e que estão a
dar em malucos! Não dá! Um gajo tem de ter carro! Mas como é que é?! Um gajo
tem carro e depois tem de sustentar a máquina: a gasolina (Ai! A gasolina!!!),
o selo do carro, o seguro, a revisão, uma coisa aqui, outra acolà, juntando com
o ordenado da casa, a água, a luz, o gás, a comida, a roupa, a mobília... Oh,
meu Deus, meu Deus! Com os ordenados que existem neste país quem não se mete
nisso sou eu. Num país em que o ordenado mínimo é mais baixo do que maior parte
das rendas de casa, prefiro andar por aqui, fumar umas ganzas, beber um vinho,
tocar uma viola, estar com o pessoal e nem sequer pensar nisso! Eu prefiro nem
sequer pensar nisso!” - acabou ele já exaltado, já a falar mais alto,
despejando ali toda a sua raiva e frustração como eu raramente via, enquanto,
ao mesmo tempo, a afogava no copo de vinho. Entretanto, o Sr. Castelo estava a
ouvir a conversa e meteu-se:
“-
Então, olha lá, ò Miguel: e quem é que te dá de comer? E quem é que te paga as
roupas que tens vestidas? E a água com que tomas banho e o gás que a aquece?” -
perguntou ele em tom sério, procurando a verdade que tão bem ele sabia sobre o
Miguel e sobre tantos outros que por lá passavam e paravam.
“-
Sr. Castelo...” - respondeu-lhe ele – “... evidentemente que quem paga a água
com que tomo banho, a comida que como e a electricidade que gasto em casa são
os meus pais, mas de vez em quando eu trabalho e dou dinheiro em casa... compro
roupa para mim e às vezes alguma coisa para a casa..."
“-
Ah, é?! E como é que tu achas que as coisas são mantidas? De certeza que lá em
tua casa não são todos como tu, porque se fossem num instante o barco ia ao
fundo! Para as coisas serem mantidas nós temos que trabalhar todos os dias e
todos os dias ir á luta!” - atacou-o o Sr. Castelo, sem misericórdia.
O
Miguel calou-se por momentos, pensativo e sem resposta que justificasse a opção
de vida que tomava ao despejar a sua sobrevivência e o seu bem-estar material
nas costas de alguém lá de casa, que tinha de ir trabalhar todos os dias para
que as coisas fossem mantidas. Sem mais saida e resposta, respondeu:
“-
O que isto está aprecisar é de uma revolução!!!”
“-
No meu ver, Miguel...” - continuou o Sr. Castelo – “... a revolução que tem de
ser feita é na vossa cabeça... é no vosso coração! Como é que vocês pensam em
mudar alguma coisa se não lutarem por ela, nem mudam a vocês próprios? Para a
sociedade ser mudada nós temos que nos meter no meio dela e chafurdar lá dentro
à procura das migalhas que caem perto de nós. Olhem lá para mim: eu tenho dois
putos que estão na escola, o que não é nada barato. O que é que acontece se eu
paro de trabalhar? Eu não consigo mudar nada neste mundo, nem nesta sociedade,
mas eu não posso parar... primeiro porque não quero ficar dependente de ninguém:
uma pessoa tem de aprender a desenvicilhar-se sozinha, tem de aprender a
sobreviver sozinha, senão, que tipo de pessoa é que ela é?... e segundo eu não
posso parar porque já tenho duas crianças á minha responsabilidade e elas não
podem sofrer com as minhas escolhas...” - enquanto falava isto ele procurou ir
buscar o amor que sentia pelos filhos e transmití-lo a nós, para que o
entendessemos e não o levassemos a mal devido ao que ele dizia.
“-
Isto é um mundo cão! Um gajo lança-se ao mar e está entalado!” - o Miguel já
não tinha mais conversa a não ser a crítica e mal-dissência. Eu procurei
adiantar a conversa:
“-
Sabe o que é que eu penso, Sr. Castelo? Que o que é certo é que os jovens estão
a tomar estas opções de vida e não estão a lutar por construir um vida enquanto
é tempo e que o resultado disto é que daqui a dez anos vamos ver bandidos e vagabundos
como nunca se viu...”
“-
Meu caro...” - falou o Miguel – “... estes políticos estão a arrebentar com
tudo e existem muitos empresários e financeiros que estão a comer tudo! O povo
cada vez mais vai estar entalado! Possivelmente estes jovens que agora não
fazem nada, são aqueles que no futuro vão ser a frente de resistência de uma
enorme revolução por não terem nada a perder. Lembras-te quando foi a
manifestação na ponte 25-de-Abril contra as portagens? Maior parte do pessoal
que andou ali a fazer frente à polícia, no meio da auto-estrada, a atirar
calhaus aos gajos, a destruir as divisórias e a pegar fogo ao mato seco no meio
da estrada, era a juventude que andava completamente passada da cabeça com esta
merda toda e que não tinha nada a perder! Tu viste muito bem que ao redor da
auto-estrada, em cima das colinas e da ponte do Pragal, estavam os velhos e todos
aqueles que tem alguma coisa a perder por já terem colocado a corda à volta do
pescoço com as compras a crédito e os empréstimos aos bancos, torcendo por que
os que estavam lá em baixo, à porrada com a bófia, vingassem e conseguissem de
vez acabar com aquela tanga que são as portagens que lhes comem, pelo menos, um
décimo do ordenado quando eles, todos os dias, vão para Lisboa trabalhar. No
fim deram um tiro no tal rapaz que ficou numa cadeira de rodas (ainda hoje sem
ter recebido qualquer apoio do estado e já lá vão sei lá quantos anos, é
preciso notar!), dispersaram à porrada o povo que assistia aquilo, que até
mulheres grávidas que estavam nas paragens do autocarro levaram e acabou-se. Por
medo, aqueles que tinham algo a perder, não apoiaram aquilo que os que não
tinham nada a perder tinham começado e estavam a aguentar. Resultado: as
portagens ainda lá estão e a aumentar todos os anos pelo menos uma vez! Os que
têm a corda ao pescoço continuam a pagar portagem e os que não têm nada a
perder, continuam sem ter nada a perder, sem casa, sem carro e sem família. Se
alguém pode mudar alguma coisa nesta terra são os que se diz que nada fazem da
vida! Vais ver: quando estalar ai uma revolução (que eu acredito que vai
estalar!), quem vai lá estar na frente de resistência vamos ser nós, os que
não-querem-fazer-nada-da-vida!”
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Vista oriental do caminho do Cais do Ginjal com Lisboa na
margem norte do rio Tejo. Foto: António Vitorino |
O
Miguel estava já estava um pouco nervoso, quase delirante, pois, aquela
conversa estava a tocar-lhe no calcanhar-de-Aquiles.
“-
Mas sabes muito bem que não vais poder continuar assim...” - disse-lhe eu –
“... porque o que te acontece é que vais acabar como um mendigo. Evidentemente,
que a sociedade está a passar por uma fase nada fácil de sopurtar, mas temos que
conquistar a nossa independência. Existem vários factores que te podem até
levar à loucura quando te encontras numa condição dessas, de viveres em casa
dos teus pais e dependente deles, não trabalhares: a mais difícil de todas é a
frustração interior que sentes por estares a ir contra a lei da Natureza em que
cada um tem de aprender a olhar por si e ser independente... outra coisa que
pode trazer várias preturbações é a questão sexual: em casa dos teus pais não
podes levar uma mulher para jantares com ela, falares e acabares por fazer
amor... sem trabalhares, nem dinheiro tens para alugares um simples quarto de
pensão... mesmo que seja ela quem alugue o quarto numa pensão qualquer, quando
o sexo acaba, vais ter que lhe cravar um cigarro e mais uma vez a frustração e
a tua realidade pressegue-te... não consegues constituir família assim... e eu
sei muito bem que é uma coisa que tu queres muito: uma mulher e filhos!”
“-
Na condição em que o mundo está não sei se é isso que quero. Não sei se tenho
coragem para colocar uma criança no mundo do modo como isto está!” -
defendeu-se.
“-
Repara...” - continuei – “... que eu não te estou a atacar... se estou a atacar
alguma coisa é a condição mundial que proporciona que pessoas que eu tão bem
conheço desistam de lutar, de construir qualquer coisa em suas vidas e vivem a vida,
todos os dias em frustração, em dor, em agonia, queimando o pouco, ou nada que
tem, em cigarros e murtalhas, afogando as mágoas em copos de vinho que nem
sequer pagam.”
Pronto!
Aquilo fora a gota de água que faltava para o copo transbordar! O Miguel
endireitou-se na cadeira e olhou para mim de olhos muito abertos:
“-
Olha lá! Estás a mandar-me à cara o copo de vinho que tenho aqui à frente?!”
O
Sr. Castelo que tinha estado até então debruçado sobre o balcão para ficar mais
perto de nossa conversa como espectador activo, endireitou-se também, olhando o
Miguel, analisando em crítica negativa a postura que o outro estava a tomar.
“-
Não é nada disso!” - procurei eu acalmá-lo – “- Quantas vezes bebo eu copos de
vinho que me são pagos por ti, ou por outros? Repara que se tu estás nessa
situação e a tomar essa decisão para com a tua vida, juntos contigo, estão mais
umas centenas de jovens só aqui em Almada e milhares por todo o país e milhões
por todo o mundo. Eu não te estou a atacar a ti pessoalmente: estou a tentar
compreender o que pensa uma pessoa assim, no meu ver, vítima do império
capitalista, consumista e materialista que conquistou todo o território
nacional e praticamente todo o mundo, chamado, civilizado.”
“-
Mas eu...” - o tom de sua voz já me mostrava que ele não estava a conseguir
sopurtar o tema da conversa... que era doloroso demais para a sua capacidade de
aceitação sobre a sua própria vida – “... já estive muitas vezes a trabalhar e
entalaram-me sempre!”
Eu
sabia muito bem que aquilo era uma desculpa que ele inventara para se
justificar da sua condição. Ele até tinha histórias detalhadas (com promenores
verídicos à mistura, não duvido) de como é que o tinham presseguido e
prejudicado nos trabalhos em que estivera. Está bem que nos locais de trabalho
existem sempre pessoas que, por uma, ou por outra razão, estão sempre à procura
de prejudicar os outros, mas no seu caso era tudo uma auto-justificação,
inventada para si mesmo e para os outros, afim de poder acordar todos os dias
e, minimamente, encarar o dia de cabeça erguida.
Entretanto
chegou o puto Gaspar, que já não era puto nenhum, mas como o conhecíamos há
tanto tempo, o nome mantinha-se.
“-
Então, pessoal!” - comprimentou-nos ele como que quase acabado de acordar – “-
Alguém tem murtalhas?” - perguntou de voz trémula.
Aquilo
foi como que a salvação do Miguel: o vinho já o desinibira o suficiente para
conseguir confrontar a conversa que estávamos a ter... mas só a simples prespéctiva
de fumar daquela ganza vinha deixá-lo já mais cômodo, confiante consigo mesmo e
com os outros, pois, já sabia que ia ficar com a pedra. Ainda por cima ele era o único que tinha murtalhas, o que
queria dizer que a ganza iria ser rodada para si, com toda a certeza.
“-
Eu tenho lençóis!” – se metade da força e da convicção com que disse aquilo e
se ergueu da cadeira para tirar a carteira onde as murtalhas estavam guardadas fosse
projectada e mantida na construção de uma vida material, seria mais do que
suficiente para realizar coisas muito belas e vivificantes para consigo e para
com a sociedade em geral. Mas aquilo era uma força momentânea, interesseira,
projectada num objectivo mesquinho.
Eu,
como estava deveras obstinado em dar vida a Almada
dos Meus Olhos, virei-me para o puto Gaspar e perguntei-lhe, com
intensidade moderada:
“-
Olha, Gaspar, estás a trabalhar?”
Ele,
que estava em pé, apoiado nas costas da cadeira da mesa ao lado da nossa e
virado para mim, bem perto, simplesmente, sacudio a cabeça. O Sr. Castelo, por
sua vez, parou de limpar um dos imensos copos que tinha para limpar,
acabadinhos de tirar da máquina-de-lavar e olhou-me de soslaio, interrogativo,
com a expressão de "mas-o-que-é-que-tu-estás-à-procura?"...
“-
E há quanto tempo é que não estás a trabalhar?” - Interroguei-o sem mesiricórdia.
“-
Sei lá! Há um ano, talvez.” - respondeu sem quase sem emoção, enquanto queimava
o haxixe na ponta de um canivete com uma lâmina de sete dedos de comprimento. O
Gaspar tinha um visual punk desde que
o conhecera há mais de quinze anos... e ele já estava com vinte e cinco anos de
idade. Morava no bairro do Monte da
Caparica, mais conhecido como o Bairro
Amarelo. Pessoa pacífica, calma, que de vez em quando vendia haxixe para
ter uns trocos para o tabaco, para a sua bebida, para o transporte público, para
sair com a namorada e ir até um cinema, à praia, para a noite de Lisboa, ou a
algum concerto. Vivia sozinho com a mãe, pois, segundo ele, o pai tinha
falecido quando ele ainda era pequeno. A sua vida familiar não era fácil: a mãe
trabalhava duro numa fábrica qualquer e como só ganhava um ordenado mínimo e o
filho não trabalhava, tinham que viver os dois naquele gueto, longe da qualidade de vida a que ela estivera habituada
durante toda a sua vida de casada. Portuguesa e de pele clara... os sonhos de
menina estagnados, apodrecendo, numa qualquer linha-de-montagem... no meio daquele
bairro e em sua humildade. Ela já se dava por contente que o filho não andasse
metido na heroína, nem na cocaína, nem com os gangs organizados do bairro. O filho tinha uma namorada (bonita e
simpática, por sinal e que a tratava com todo o respeito e que até se prestava
em ajudar em alguma coisa quando ia lá a casa) e até comprava, ás vezes, com o
dinheiro ganho no seu pequeno tráfico, uma flôr para lhe oferecer. E nunca
deixava de lhe comprar prendas no dia do seu aniversário, no dia da mãe, no
Natal...
“-
Então e porque é que não trabalhas?” - ele também era uma pessoa humilde... se
fosse outro não tinha levado tão bem a minha brusca intromissão em sua vida
particular, mas como nos conhecíamos há alguns anos, a pergunta foi facilmente
aceite.
“-
Sei lá! Não gosto! Não preciso! Trabalhar para quê?”
“-
Mas já trabalhás-te, não já?”
“-
Claro!”
“-
E porque é que parás-te?”
“-
Porque o patrão era um estúpido!” - para si, uma justificação mais do que
suficiente.
“-
Olha lá, Gaspar e o que é que tu pensas fazer da tua vida?”
Aquela
pergunta, que ele só costumava ouvir muito raramente da sua mãe, ou de alguma
pessoa mais velha e com postura de responsável, fê-lo erguer a cabeça e
controlar o ambiente em que estava e do qual ele ainda não se havia apercebido
muito bem, devido aos resíduos de moca da noite anterior que ainda pairavam em
sua mente meio adormecida. Olhou para mim algo surpreso, olhou o Miguel e o Sr.
Castelo, todos esperando uma resposta... e apercebendo-se que aquela pergunta
já tinha qualquer coisa por trás e que tinha começado antes dele chegar,
perguntou-me:
“-
Então e por é que queres saber?”
Entretanto chegou
a Liliana, a namorada do puto Gaspar, pois, eles tinham combinado
encontrarem-se ali áquela hora, depois do almoço. Esperei que ela chegasse até
ele, que se beijassem com o amor que lhes era próprio e respondi-lhe:
“-
Bem... tudo começou porque estou a começar a escrever um livro..”
“-
... a escrever um liiivro?!...” - gritou o Sr. Cstelo em tom de zombaria lá de
trás do balcão.
“-
... e...” - continuei – “... começámos por falar do porquê de maior parte do
pessoal que nós conhecemos não lutar para construir a sua vida, não estar integrados
na sociedade, trabalhando, pagando as suas contas, os seus impostos e sendo
independente. Começou assim e tu foste um bocado apanhado no meio da conversa.”
Ele
passou a língua na murtalha e colou-a, dando uma forma cónica perfeita ao
charro.
“-
Então,diz lá: se não trabalhas e se ainda vives em casa da tua mãe com a idade
que tens, o que é que pensas fazer da vida?” - tive eu que lhe perguntar outra
vez, mas agora a coisa soara de outra maneira, pois, a namorada estava presente
e eu não sabia se eles já tinham falado em futuro, se não, mas o que é certo é
que o campo de intensão que saia de si tinha-se transformado e ele estava com
uma postura mais madura, mais prudente, notoriamente influenciado pela presença
da Liliana naquela conversa. Nem por isso me pareceu deixar de ser sincero:
“-
Eh, pá! Sei lá eu! Talvez trabalhar e constituir família...”
“-
Então, mas ainda aqui estás!?”
“-
Sinceramente, não me apetece nada ir trabalhar. O que eu gostava era de
fabricar e vender artezanato.”
“-
Mas isso é trabalhar, meu rapaz!”
“-
Sim... mas é diferente!”
“-
Diferente como?!”
“-
Aì eu trabalhava só para mim e escusava de estar a levar com a estupidez dos
outros!” - confessou ele. Esta resposta veio tirar o Miguel do seu canto
silencioso, onde esperava que a conversa não voltasse para o seu lado e que a
ganza fosse acabada de fazer e rodada para si:
“-
Estás a vêr? Estás a vêr? É assim! Este mundo é uma merda e um gajo tem de
andar a levar com a ignorância dos outros para ganhar dinheiro... gajos que
exploram um homem até não poderem mais e ainda pisam e cospem em cima de ti.”
O
Sr. Castelo estava calado e ao mesmo tempo que ouvia, estava como que apartado
da conversa, pois, em questões de posição patronal, ele também tinha fama de
ser explorador e mau-pagador.
“-
Pois é!” - continuou o puto Gaspar - “Basta um gajo sentir-se com mais um
bocadinho de poder e começa logo a tratar os outros como se fossem cães. Isso é
uma das coisas que me levam a não trabalhar: não tenho que estar a levar com
esses gajos!”
Aquela
era uma das coisas que faziam com que Portugal estivesse a caminhar de forma descendente
no que diz respeito à economia e ao poder de compra da população: a falta de
valorizção da mão-de-obra, fosse ela qual fosse e fizesse ela o que fizesse,
resultando dai que as coisas que o indivíduo trabalhador fazia, não as fazia
tão bem, já que independentemente de as fazer bem, muito bem, ou menos bem, o
seu trabalho dificilmente era reconhecido em forma de palavras, ou de aumento
salarial. Numa sociedade mais perfeita, a mão-de-obra valorizada - quer fosse
com recompensa monetária, quer fosse com a oportunidade do melhoramento da
condição socio-económica do indivíduo trabalhador - faria com que a produção
aumentasse, a economia subisse e que o povo andesse mais feliz... e se o povo
andasse mais feliz, a economia sobiria e a produção aumentaria. Seria um ciclo
positivamente vicioso.
Independentemente
de eu concordar com o Miguel e com o Gaspar em alguns pontos, não deixei de os confrontar
pessoalmente, muito para além daquilo que eles utilizavam como justificação
para estarem na condição em que estavam:
“-
Mas se vocês não trabalharem e não se fizerem à vida, vocês acabam como
mendigos... acabam como sendo o resto da sociedade... agora já nós não nos sentimos
bem em muitos sítios devido à nossa falta de dinheiro, ou à devido à nossa
condição social, ou até mesmo devido ao nosso método de ganhar dinheiro. Se
continuarmos assim, tornamo-nos naquilo que já somos, mas, então, de um modo
irreversível: parasitas da sociedade! Seremos uns frustrados na vida, nenhuma
mulher nos quererá e nenhuma criança nos tomará como bom exemplo a seguir. Quanto
muito seremos os exemplos daquilo que não se deve escolher fazer da vida!”
Evidentemente,
o silêncio instalou-se e a mágoa ficou no ar... a mágoa deles para comigo por
eu ter sido o portador das palavras que falaram a verdade sobre as suas
vidas... deles para com eles porque o que falara era verdade e eles sabiam-no
muito bem... deles para com o mundo porque, afinal, era por o mundo estar como
estava e as pessoas fazerem do mundo aquilo que ele era naquele tempo, que eles
estavam a escolher todos os dias, ao acordarem, viverem a vida como estavam a
escolher viver...